A sexta-feira da semana passada foi marcada por mais um Dia da Consciência Negra, data escolhida pela comunidade para celebrar as lutas, as conquistas, a cultura do povo negro, para discutir e denunciar a permanência de relações racializadas e racistas entre as diferentes etnias que formam a população e para reivindicar mais direitos àqueles que contribuíram decisivamente para a construção do Brasil.
Embora o APERS não tenha conseguido realizar na semana da Consciência Negra um evento sobre as diversas temáticas possíveis e desejáveis de discussão para essa data, há tempos temos problematizado a história da escravidão, da luta por liberdade e das relações étnico-raciais, no decorrer de todo o ano. Nesse, especialmente, realizamos um trabalho de fôlego que, em paralelo à realização de um curso de formação para professores e para nossa equipe sobre tais temas, reformulou a oficina de educação patrimonial Os Tesouros da Família Arquivo, que os aborda a partir de documentos aqui salvaguardados e permite entrar em contato com vestígios do passado que registram a história de pessoas que foram escravizadas no Rio Grande do Sul.
A oficina foi a primeira criada na parceria entre o Arquivo Público e a UFRGS, sendo oferecida desde 2009 no âmbito do Programa de Educação Patrimonial (PEP). Em 2015 dedicamos a ela o primeiro semestre, aprofundando a pesquisa histórica em nosso acervo para escolher novos documentos que deem conta de ressaltar a diversidade de experiências e a resistência cotidiana de sujeitos históricos muitas vezes generalizados pela categoria “escravo” ou “escravizado”.
Hoje, como forma de valorizar e difundir o trabalho realizado, e de celebrar a Consciência Negra, compartilhamos um produto especial desse percurso: as gravuras que representam os personagens presentes na documentação analisada na oficina, que foram produzidas por Bruno Ortiz, professor de história e desenhista contratado pelo PEP. Até 2014 os estudantes recebiam uma silhueta com o perfil de uma mulher ou um homem escravizados, que deveriam caracterizar desenhando e escrevendo informações coletadas na pesquisa documental, buscando dar identidade aos indivíduos, como nestas fotos:
Entretanto, ainda que os estudantes fossem incentivados a personalizar as silhuetas, e a discussão fosse canalizada para a recuperação de histórias que foram conectadas pela experiência do cativeiro, mas que tinham suas singularidades, como utilizar o mesmo perfil para retratar a Maria, identificada como tendo vindo da região do Congo, que recebia sua alforria em 1883, quando tinha “noventa anos, mais ou menos”, e a Jacinta, nascida no Brasil, que estava sendo vendida com seu marido, Vicente, e com seu filho, Fortunato, de 1 aninho? Foi na tentativa de dar identidade a estas pessoas que as novas gravuras foram produzidas, e hoje são parte do material pedagógico utilizado pelas turmas que vivenciam a oficina Tesouros. Aqui estão:
Paulo, africano, carneador, mais ou menos 53 anos, comprou sua carta de liberdade (Alforria, Pelotas, 1873)
Manoel, alfaiate (Inventário de Antônio Joaquim da Silva, 1860, Triunfo)
Francisca Rosa, 12 anos, liberta sob a condição de seguir em companhia dos senhores até seus 23 anos (Alforria, 1871, registrada em 1883)
Januário, liberto por não trabalhar, ora por estar doente, ora por estar “agenciando donativos para a sua liberdade” (Alforria, Rincão de Santo Izidro, próximo a Itaqui, 1875)
Manoel e Anna, ambos de nação Benguela, casados em Viamão em 1790 (Registro de matrimônio/Acervo Cúria Metropolitana de Porto Alegre; Registro de compra e venda e Carta de liberdade/APERS)
Jacinta, Vicente e Fortunato, família formada apesar da escravidão (Registro de compra e venda, 1848, Alegrete)
Maria, mais ou menos 90 anos, vinda da região do Congo (Alforria, Viamão, 1883)
Francisco Pancho, 11 anos, natural do Estado Oriental, atual Uruguai, sequestrado e escravizado ilegalmente em São Leopoldo (Processo crime, 1854, São Leopoldo)
Antônio Domingos, “preto forro”, pertencente à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, suas afilhas Rita e Jeronima, e sua empregada Joaquina (Testamento de Antônio Domingos, 1868, São Jerônimo)
Aguedo, 17 anos, oleiro, e Maria, 20 anos, cozinheira, conhecidos através da Matrícula de Escravos de 1872 (Inventário de João Stoll, 1877, São Leopoldo)
63 escravizados registrados em um único inventário, suscita discussões sobre os grandes plantéis, as diferentes origens, idades e profissões de cada escravizada(o) (Inventário de Bernardino José Flores, 1868, São Leopoldo)
As gravuras foram produzidas a partir da caracterização feita com base na pesquisa documental, transmitida ao artista pela equipe do PEP, e também em pesquisas bibliográficas e iconográficas realizadas por ele. Documentos e imagens possibilitam debates sobre a origem de cada escravizado, condições de vida, formas de resistência e de trabalho, especialização, cultura trazida do continente africano, reorganizada desde o tráfico transatlântico e produzida no Brasil, casamento e formação de famílias, luta pela liberdade e formas de alforria, entre diversos outros temas, que contribuem para que possamos conhecer trajetórias e relações sociais, entender sua complexidade, e nos apropriar de histórias que nos constituem.
Com esta postagem não apenas celebramos o Dia da Consciência Negra, mas especialmente reafirmamos o compromisso do APERS com a difusão de acervos, temáticas e pesquisas relacionadas ao conhecimento e valorização da história de negras e negros em nossa sociedade. Nesse sentido, é oportuno destacar uma recente conquista: a partir do próximo ano 20 de novembro será feriado municipal em Porto Alegre, decisão aprovada recentemente pela Câmara Municipal de Vereadores como resposta a uma reivindicação histórica da comunidade negra dessa cidade.
De nossa parte, assumindo nossa responsabilidade enquanto instituição pública de memória, continuaremos, por meio do desenvolvimento de diversas atividades, valorizando as lutas e o legado do povo negro, e multiplicando os 20 de novembro no APERS.
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