Na semana anterior, a historiadora Arlene Guimarães Foletto vinha explicando as relações entre as escalas macroscópica e microscópica em seu trabalho. Confira a parte final de sua entrevista!
Que pesquisas você tem feito mais recentemente aqui no Arquivo Público?
Então, a partir de 2011 quando eu estava no Instituto Federal, lá em Santa Catarina, comecei a desenvolver pesquisa com fontes primárias com os meus alunos de Ensino Médio, montamos um grupo de pesquisa, e digamos: “metemos as mãos nas fontes”. Inclusive, uma questão muito interessante, a ideia emergiu dos alunos, foram eles que me procuraram com objetivo de fazer pesquisa na área de História. Na época eu ainda estava enrolada com o final da tese, disse para eles que eu iria pensar e que dava retorno. Inicialmente começou com um grupo de três alunos, que logo virou sete. Comentei com eles que poderíamos trabalhar, mas como eu estava muito envolvida com as questões do doutorado, ir para outro espaço pesquisar seria difícil para mim. Então propus para eles que pesquisassem o espaço que eu já pesquisava. Na época tinha todo o tabelionato para Itaqui levantado e não estava utilizando tal fundo de uma forma quantitativa. Propus que começassem a trabalhar com as fontes notariais. A partir de 2011 os alunos foram se alternando, uns saíam, porque terminavam o curso, outros ingressavam… Entre 2011 e 2014 trabalhamos com o tabelionato: tabelamos a fonte e a partir daí fizemos uma série de estudos, desde a mercantilização da terra, arrendamento, sobre dívidas, hipotecas explorando o fundo notarial. Em alguns momentos eles vieram até o Arquivo para conhecer, para ver de onde havia saído aquele material que eles estavam trabalhando, em outros momentos a gente utilizava outras fontes daqui do Arquivo para complementar nossas análises, chegamos até a trabalhar com os processos-crime. Fazíamos todas as etapas de uma pesquisa de iniciação cientifica: transcreviam a fonte, tabelavam, liam textos pertinentes, discutíamos, analisavam os dados, escrevíamos… Apresentávamos os resultados, em diferentes eventos, sempre ganhando algum destaque. Isto enche o coração de qualquer professora de orgulho!!! Eram alunos do Ensino Médio sendo historiadores, sabe… Agora, eu não estou no IF, estou aqui no Colégio de Aplicação e neste ano eu consegui dar continuidade a este trabalho. Agora, no Aplicação, com autos de processos crimes, que é com o que estou trabalhando no pós-doutorado. A estudante que começou a trabalhar comigo, tem outra perspectiva, diferente da minha, quis trabalhar com a temática de gênero. E assim fizemos… Inclusive ganhamos destaque no Salão Jovem UFRGS. Bom, e eu, o que estou fazendo agora? Neste ano de 2019 foi a primeira vez que eu tive dedicação exclusiva para estudar. Então é a primeira vez que, digamos assim, eu consegui me dedicar ao ofício de historiar. Estou como pós-doutoranda da pós-graduação da UFRGS, trabalhando sob a supervisão do professor César Augusto Guazzelli, que foi meu orientador no doutorado e, mais uma vez dei outra guinada na temática que pesquiso. Sabe, eu teria uma quantidade significativa de possibilidades de pesquisa nas fontes que já tenho levantadas comigo. Mas não consegui ficar apenas com elas… Tive que retornar ao arquivo, fazer um novo levantamento, isto é mais forte que eu [risos]! Contudo, mantenho a ideia de rastrear trajetórias para chegar às redes de relações e à importância da qualidade, reciprocidade, dos vínculos para a construção de um capital relacional. Durante a própria tese me dei conta que seria muito efetivo perceber esta questão através dos autos criminais. Então, eu estou levantando todo o fundo criminal para a Paróquia de São Patrício de Itaqui, hoje já tenho 771 processos-crime levantados, no momento estou olhando todos e separando os que são considerados válidos de acordo com o critério que escolhi, ou seja, os que se passam no universo rural, ou envolvem indivíduos ligados a atividades rurais. O que eu quero com tal pesquisa? Quero ver se a elite cometia crimes, e quais eram eles. Eu continuo tentando estudar de uma forma mais efetiva como o grupo que monopolizou a terra, gado, cargos militares e agora, também nesta nova perspectiva, cargos políticos e judiciários, se envolvia com a prática de atos tidos como ilícitos a partir do Código Criminal do Império. Também almejo tentar perceber o comportamento da Justiça em relação da posição das partes dentro da hierarquia social, como essa se comportava de acordo com posição dos envolvidos, sempre mantendo o foco nos membros da elite local. É bastante coisa, os números estão se mostrando bem significativos. Escolhi este enfoque porque praticamente não temos estudos que mostrem a(s) elite(s) cometendo crimes e caindo consequentemente nas malhas da Justiça. A maior parte dos estudos dentro do crime e da criminalidade se dedicou a trabalhar com o com os grupos “de baixo”, da hierarquia social. São trabalhos sensacionais, que deram “voz” a uma gama variada de indivíduos, suas vontades, suas estratégias cotidianas….
Tendo contato com esta historiografia, e a partir de estudos clássicos dentro da área, que resolvi então pensar a elite local, utilizando o conceito de criminalidade, mas também tendo como perspectiva o conceito de impunidade. Qualquer semelhança desses autos com a nossa realidade, provavelmente, não é mera coincidência. A elite, sim, está presente na amostra, e é numa parcela bastante significativa. Neste segundo semestre, além do levantamento, comecei a tabular tais dados. Como exemplo: apenas uma das famílias que pretendo continuar rastreando está presente em 9,5% dessa amostra dos autos criminais. É muita coisa! Só uma família, sem ir para a parentela, amigos e subordinados. O que indica que a porcentagem aumentará na medida em que os nomes dos autos criminais forem cruzados com outras bases quantitativas que já tenho: batismos, casamentos, registros paroquiais de terras, listas da Guarda Nacional, listas de votantes e votados da câmara, com vereadores e juiz de paz, tabelionato. Assim, podemos ver compadres, alianças matrimoniais, vizinhos, subordinados, amigos e se os vínculos se tornavam efetivos no momento eu que a Justiça “entrava no meio”…
Muito abigeato?
Pois então, “quando eu fui para o crime”, partindo dos números encontrados pela Mariana Thompson Flores, eu esperava que o número de furto de gado fosse maior, tanto é que o projeto do pós-doc é sobre furto de gado. Claro que esta prática era também corriqueira, durante a segunda metade dos oitocentos, do outro lado do rio Ibicuí. Contudo, a maior parte dos processos é de homicídios, tentativas de homicídios, ferimentos. Apesar de estarmos em outro momento, melhor dizendo, de em tese estarmos em uma sociedade capitalista onde os delitos e as formas de punição, discutidas pelos ilustrados da época e previstas em leis já retratam outro modelo, ao que tudo indica, no microcosmos as coisas ainda eram resolvidas ainda no corpo, digamos assim… Sabemos que a construção do Estado carregava consigo uma série de ambiguidades. Apesar de o Código Criminal ser considerado avançado para o período, ter servido de exemplo inclusive para outros Estados, ele carregou consigo a escravidão. Isto deve ser levado em consideração, em conjunto com a manutenção do status quo, uma contradição e tanto para uma sociedade que se pretendia moderna e civilizada, e obviamente isto se refletia nas relações tanto entre os indivíduos como nas instituições. Bom, acho melhor parar, caso contrário não vamos concluir… Mas se ainda tiver um tempinho, gostaria de mencionar que no momento encontro-me com uma grande dúvida: penso que talvez tenha encontrado um “excepcional-normal”. Mais uma vez o Arquivo me deu um presente. É o caso do Lucidoro Camarú. Um [processo de] homicídio composto por cinco volumes. Só o inquérito policial deste processo conta com quarenta e sete testemunhas! Ele é do final do Império, de 1889. Quando eu comecei a olhar esse processo eu pensei: “não, vou ter que parar a pesquisa para pensar um pouquinho sobre isso”. Resolvi, então, ir até 1890 para fechar redondinho o período. Abri mais algumas caixas para terminar a amostra, e acabei localizando uma tentativa de homicídio, contra o mesmo indivíduo. Até brinquei com o pessoal lá da sala de pesquisa: “Como assim? Tentaram matar um morto?” Possivelmente, quando os processos chegaram até ao arquivo, foram catalogados fora da ordem, assim pela numeração, ele foi arquivado depois. Contudo, quatro meses antes no mesmo ano de 1889, tentaram matar o Camarú, e este auto, tem dois volumes. Assim, entre tentativa e êxito, temos sete volumes. Número considerável para os padrões da época. Óbvio que ambos os processos “conversam” entre si. A vítima, Camarú, era um jornalista republicano, provavelmente mestiço, que montou uma tipografia e começa a incomodar a elite local através das notas contidas em seu periódico, às vezes por mencionar nomes, às vezes por fazer crônicas, às vezes por aparentemente apenas noticiar as decisões da Câmara Municipal. Na tentativa de homicídio, o promotor e o delegado estão envolvidos como mandatários. Os que praticaram o ato, em algum momento foram subordinados a eles ou a outros membros da elite, então os vínculos de clientelagem aparecem. No homicídio em si, são praças de polícia e da marinha que cometem o assassinato a mando de membros da elite local, que além de ter terras e rebanhos, tinham patente militar e atuavam na política, justiça e polícia. E ainda mais, sabe aquela família que mencionei na outra pergunta? Então, ela esta envolvida também neste caso! É interessante perceber como o judiciário foi se organizando enquanto instituição ramificada aos quatro cantos ao longo do século XIX e como a elite local foi construir suas estratégias para não ficar de fora do arranjo institucional, deste outro tentáculo não tão invisível do Estado. E isto que acabei de mencionar aparece tanto na amostra feita através da totalidade dos processos crime, quanto nesse caso “excepcional” que comentei. Tanto em uma quanto em outra perspectiva metodológica que a pesquisa me permitir consolidar, ao que tudo indica vai ser possível reconstruir as redes de relações das melhores famílias da terra no momento em que elas cometiam atos ilícitos e como os membros da Justiça tomavam suas decisões quando os interesses da elite local estava em jogo.
Então tá, Arlene, agradeço pela entrevista.
Eu que agradeço a vocês. Que 2020 seja mais leve para todes nós!!!
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