Pesquisando no Arquivo deste mês, finaliza a apresentação sobre o acervo do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), através da seleção de um prontuário, após a leitura de prontuários de três acondicionadores referentes ao período de 1909 a 1916. O objetivo é discorrer sobre um assunto ainda um tanto obscuro: o contexto da loucura e seu tratamento no Século XX.
Durante esse início de século, no Rio Grande do Sul, do ponto de vista epistemológico, tínhamos o modelo cartesiano de ciência, no qual havia certezas absolutas e, cada certeza, somente era substituída, à medida que fosse possível uma descoberta “mais avançada”.
Por ser um modelo de ciência, uma espécie de forma na qual eram moldados os profissionais da época, os juízos de valor sobre suas condutas devem ser usados com cautela, pois esses profissionais estavam exercendo práticas as quais foram ‘calcadas’ por saberes científicos e, dessa forma, legitimadas por grandes universidades, na maioria das vezes de origem europeia.
Na concepção cartesiana, o organismo era entendido e tratado em analogia a uma máquina e o conceito de saúde girava em torno do perfeito funcionamento dos órgãos e da ausência de defeitos. No paradigma em que se tratava a doença mental da época o conhecimento era reducionista, linear e mensurável, ou seja: só era considerado algo científico se passasse pelo crivo da razão e da lógica. Era evolutivo no sentido de uma lógica linear de crescimento e, talvez, a etapa mais problemática foi o aspecto reducionista, no qual não havia possibilidade ou interesse de se conhecer o indivíduo doente através da investigação do círculo de relações sociais, do protagonismo dele nessas relações, quais os aspectos de sua subjetividade, sua experiência, seus anseios ou necessidades, seus sonhos ou algum direcionamento em torno de sua autonomia. Simplesmente porque isso não se enquadrava no saber científico.
Outro ponto importante de abordagem é o ponto de vista político, pois nesse período havia uma sociedade pós-abolicionista almejando uma intensa urbanização na cidade de Porto Alegre, e até pouco tempo (1887) admitia a escravidão humana como algo natural e necessário.
Após a abolição, não houve mudança no paradigma e sim apenas uma variação no pensamento filosófico com a introdução dos ideais positivistas os quais permearam e influenciaram as mentalidades de muitos estudantes, filósofos, faculdades de medicina e engenharia da época. Esse método, em sintonia com o cartesianismo, desconsidera todas as formas de conhecimento humano as quais não se possam comprovar cientificamente (ficam de fora, portanto os saberes culturais, tradicionais baseados na experiência) e nega qualquer possibilidade de investigação de causas sociais ou emocionais. Qualquer processo emocional é fonte de erro e deve ser descartado. A severa separação entre sujeito e objeto, outra característica do positivismo, desconsidera qualquer empatia que o profissional de saúde pudesse ter para com o paciente, que era reduzido a um sujeito passivo e reativo.
Ao analisar um dos prontuários do período já referido, chama atenção o cuidado que teve o médico ou a pessoa que fez o registro no dia 6 de fevereiro de 1941 sobre o comportamento da interna: “Reticente… faz questão de que não se inclua em seu nome o sobrenome do marido”. A partir dessa informação, ao checar os nomes dos documentos anexos ao prontuário, verifica-se uma divergência, pois na capa está escrito F.O.G.B e infere-se que este seja possivelmente seu nome de casada, pois alguns dos sobrenomes coincidem com o do provável marido A.G.M.B. Já num pedido de internação, o nome da paciente é F.O.A.
O fato é que nesse contexto, muitos dos pacientes eram trazidos por suas próprias famílias, já exaustas, com o peso de suas próprias vidas, e sem saber como recuperar seus doentes, viam no HPSP uma fonte de esperança e alívio. Nesse caso, (segundo os documentos do prontuário) a mulher F.O.A. de 31 anos, casada, deu entrada no Hospital às 22 horas do dia 4 de janeiro de 1916, trazida por sua irmã, era doméstica, natural deste Estado, e, segundo os registros, passou por sete internações algumas mais longas (90 dias), outras mais curtas. O diagnóstico é esquizofrenia. Há várias descrições de seu comportamento e de exames laboratoriais. A primeira internação registrada no prontuário é 4 de fevereiro de 1916 e a última, em 9 de dezembro de 1946. Como era de se esperar, dentro do modelo de ciência da época, mesmo nos momentos de lucidez da doença, não se percebe a fala da paciente, a não ser que isso contribua para validar algum diagnóstico.
Seu corpo foi exposto a várias terapias de choque como a insulinoterapia de Sakel (o coma por insulina requeria cinco a nove horas de hospitalização e um seguimento mais trabalhoso, mas ela era facilmente controlada e terminada com injeções de adrenalina e glicose, quando necessário) e a eletroconvulsioterapia de Ugo Cerletti (1937).
A partir de 16 de março de 1944, num de seus reingressos, iniciam-se as sessões de eletrochoque: 22 de março, 23 de março, 27 de março, 30 de março, 3 abril, 10 de abril, “queixa-se de dores na região dorsal”. Em 28 de dezembro do mesmo ano, é prescrito novamente um tratamento de choque (mais 29 sessões), só que desta vez, por insulinoterapia (coma induzido).
Até o momento, a cura definitiva para a esquizofrenia não está descoberta, embora houve avanços nesse campo. Com uma terapia não tão invasiva e violenta como a dos choques químicos ou físicos, fases de internação nos momentos de surtos do paciente esquizofrênico, aliada a uma reeducação familiar para lidar com seu ente querido e uma busca constante de autonomia para o paciente nos momentos de calmaria ou trégua da doença tem tido consideráveis resultados, porém para isso, foi preciso um novo contexto e isso só foi possível dentro de um novo paradigma para se lidar com a doença mental.
Fontes de referência:
COMTE, Auguste. Vida e obra. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Disponível em: http://resumodaobra.com/comte-pensadores-obra/ Acesso em: novembro de 2016.
DESCARTES, R. Discurso do método. Tradução J. Guinsburg & B. P. Júnior. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, p. 25-71.
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