Hoje publicamos a segunda parte da entrevista com o professor Fábio Kühn. Na primeira parte da entrevista, ele estava nos falando da documentação do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul empregada em sua pesquisa. Aqui, ele segue respondendo sobre o assunto.
Mas devo confessar que o que me deu mais gosto e que eu realmente viajei, muitos meses a fio, foi a pesquisa nos livros de notas do século XVIII, que estavam inacessíveis na época. Para minha sorte, como professor aqui da Universidade Federal, tenho muitos alunos que trabalham como estagiários lá, e me lembro que na época era estagiário o Jovani Scherer. Eu fiz uma solicitação pra direção do Arquivo Público pra poder acessar esses livros que estavam fora de acesso por motivos de má-conservação. Eu insisti muito, justificando a importância dessas fontes, e a diversidade. Se os inventários e testamentos são documentos mais ou menos padronizados, e que seguem um determinado modelo (a partir da legislação portuguesa, da legislação civil e eclesiástica), nos livros de notas… e eu tinha uma noção do que existia nesses livros de notas por conta de uns catálogos publicados pelo Arquivo Público no início do século XX. Catálogos do notariado de Porto Alegre, publicados ainda na época do Borges de Medeiros, logo depois da inauguração do arquivo. Não me lembro como é que me deu nas mãos esses catálogos, acho que através do Instituto Histórico. E aí eu me surpreendi com a diversidade de fontes que esses livros traziam. Escrituras de compra e venda, cartas de alforria, contratos dos mais diversos tipos, sociedades, arrendamentos, procurações, enfim, uma plêiade de informações sobre aquela sociedade que estava se formando, que eu pensei, não posso deixar de olhar. E consegui autorização pra consultar, ainda que em um lugar resguardado, mediante todo cuidado, porque alguns desses livros estavam literalmente se desmanchando, possivelmente eu fui o primeiro em cem anos a manuseá-los, porque outros colegas que tinham trabalhado com o período não tinham… e na verdade, meu interesse inicial nem era olhar todos tipos de fontes que os livros de notas tinham, mas sim as escrituras de dote. Como eu estava preocupado com estratégias familiares, eu tava muito preocupado em ver a disseminação dessa prática muito comum em sociedades de Antigo Regime, que era a dotação de filhos e filhas que se casavam, e tinha um caso especial, particular, do Manoel Fernandes Vieira que eu sabia que tinha escritura de dote. Estava justamente nesses livros inacessíveis. Ao acessar essa documentação um novo mundo se abriu, porque eu percebi a riqueza dessas fontes, transcrevi alguns desses documentos, fotografei outros, com muito cuidado, porque alguns desses livros eu me lembro que literalmente estavam… um deles tinha um buraco, literalmente, no meio do fólio que fazia com que cada vez que se virasse a página alguma informação se perdesse, então eu procurei fotografar. Os livros de notas me revelaram muitos detalhes sobre essa sociedade oitocentista…[1] Não apenas as informações sobre as famílias que eu queria, mas diversos tipos de transações comerciais, compra e venda de imóveis.
É possível, por exemplo, fazer um estudo, que eu saiba não foi feito ainda, sobre o mercado de terras no século XVIII a partir das escrituras de compra e venda de terras. Percebi que em alguns casos os personagens que eu estudei se aproveitaram da conjuntura de guerra para comprar propriedades a preços muito baixos e que, terminada a guerra, venderam as mesmas estâncias por valores muito maiores, ou seja, aquilo que a Helen já falava na dissertação de mestrado dela, a fronteira já estava de certa maneira fechada. A maior parte das terras estava apropriada e a ideia do Rio Grande do Sul como uma terra de ninguém, uma fronteira onde qualquer um podia chegar e se instalar não é bem verdade. Essa documentação notarial permite vários tipos de abordagem. Fiquei meses debruçado naquilo, passei muitas tardes dentro do arquivo pesquisando e agradeço publicamente.
A gente tem o teu trabalho, também o levantamento das cartas de alforria, mas de fato a documentação notarial é um universo a ser explorado.
Pouco explorado e eu, me chamava atenção que os historiadores locais não se valessem dessa fonte. Eu me lembro de ter visto referência a documentação notarial justamente no trabalho do Monsenhor Ruben Neis, que foi talvez um dos pioneiros… Mas também assim, uma consulta muito, muito pontual, e creio que mereceria um estudo sistemático. Mais sistemático. Uma documentação que permitiria estudos de história serial, quantitativa, mas não apenas, já que a documentação é muito variada e revela detalhes sobre o funcionamento daquela sociedade que não aparecem em outras fontes.
Veja só, Fábio. Já vai entender por que que eu tô perguntando isso. Em que ano tu pesquisaste lá?
Eu pesquisei em 2003 e 2004.
Chegaste aos nomes dos inventários através daquelas fichas?
Através daquelas fichas que existiam naquele armário.
Pois é, isso é uma informação que talvez te interesse, interesse a quem ler essa entrevista, que hoje em dia isso tá computadorizado. Está catalogado. É um sistema que ainda precisa ser aperfeiçoado, mas hoje em dia tu chega com um nome, eles vão lá procurar, tem condições de encontrar esses… Inclusive esses, talvez, que tu não encontraste antes.
Quem sabe, talvez uma nova busca hoje pudesse encontrar esses inventários, especialmente alguns que me impressionaram muito. Agora eu quero apenas fazer um adendo, que agora falando eu me lembrei. Além dos inventários, testamentos e livros de notas, outra coisa que aí graças ao Jovani, ele me chamou a atenção, eu nem sabia que existia, porque isso não existia registrado. Uma documentação bárbara e que ajuda a entender as dificuldades dos pesquisadores desse período mais recuado é a documentação da Câmara. Sim, alguém que conhece um pouco os fundos deve estar pensando “mas a documentação da Câmara de Porto Alegre não tá lá no arquivo Moysés Vellinho?” Sim. As atas da Câmara, boa parte da documentação tá lá. Correspondências. Livros de Posses. No entanto, alguns códices do Registro Geral da Câmara em Viamão estavam por algum motivo no Arquivo Público. Por algum motivo não. Na verdade a resposta eu descobri alguns anos depois. As Câmaras coloniais, como muita gente sabe, elas reuniam aquilo que podemos chamar hoje Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Quando da organização dessas fontes, absurdamente, elas foram desmembradas. E é por isso que o fundo Câmara, documentação da Câmara de Viamão e Porto Alegre, ela é encontrada em parte no Arquivo Moysés Vellinho, outra parte está no Arquivo Público, não sei se essa documentação não foi enviada depois para o Moysés Vellinho, e outra parte no Arquivo Histórico. Os livros da almotaçaria, os livros dos almotacéis, funcionários da Câmara, estão também no Arquivo Histórico. Então a incompreensão da estrutura administrativa colonial na hora de gerar os fundos pulverizou a documentação da Câmara, talvez de forma involuntária. Não deveria estar no Arquivo Público, mas estava lá.
Bom, Fábio, encaminhando pro fim da entrevista, tu pretende voltar pro Arquivo Público?
Com certeza. Um acervo como esse, acho que é inesgotável. Embora meus últimos projetos de pesquisa estivessem se debruçando sobre um espaço extra-Continente, agora por conta do novo projeto de pesquisa que estamos começando em 2019, sobre a produção cartográfica dos engenheiros militares na segunda metade do século XVIII, certamente o Arquivo Público vai entrar na nossa rota de novo, depois de alguns anos pesquisando em arquivos de fora de Porto Alegre. Certamente me verão lá em algum momento, buscando informações para o projeto novo, porque é um acervo, como eu disse, talvez o arquivo em si, o acervo que ele abriga é dos mais extraordinários que eu conheci comparando com arquivos de outros lugares, a própria ideia de ter um arquivo como esse em moldes modernos já é algo incrível.
Espero que essa entrevista te sirva como estímulo pra voltar a frequentar nossa sala de pesquisa.
Com certeza. Voltarei.
Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.
[1] Os livros notariais do século XVIII encontram-se indisponíveis devido ao seu mau estado de conservação.
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