Entrevista com Melina Kleinert Perussatto – Parte I

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Melina Kleinert Perussatto é licenciada em História pela UNISC (2007), mestra em História pela UNISINOS (2010; dissertação disponível aqui) e doutora em história pela UFRGS (2018; tese disponível aqui). Foi professora substituta na Universidade Federal da Fronteira Sul, é docente de história na Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo e realiza estágio pós-doutoral na UNISINOS.

Melina, por favor, você pode falar um pouco sobre a sua trajetória acadêmica?

Eu sou graduada em História pela UNISC, Santa Cruz do Sul, me graduei em 2007. Mestre em História pela UNISINOS, concluí a dissertação em 2010, sob a orientação do Paulo Moreira. Fiz o meu doutorado na UFRGS, sob orientação do Fábio Kuhn, com sanduíche na UNICAMP, sob supervisão da Lucilene Reginaldo. Defendi em 2018. E agora eu curso o pós-doutorado, de novo com o Paulo Moreira na UNISINOS, voltando à casa. É isso em termos de formação acadêmica.

Qual é o papel das fontes do Arquivo Público nessa formação?

São fundamentais em minha trajetória de pesquisa, ao lado das fontes do Arquivo Histórico Municipal de Rio Pardo, onde fui bolsista de iniciação científica, entre 2006 e 2007. Acabou que uma colega, a Fábia Beling, encontrou uma documentação da junta de emancipação de escravos, de Rio Pardo, que eu passei a pesquisar. O professor José Remedi, que era o coordenador do projeto e que se tornou meu orientador, me deu a liberdade de começar uma pesquisa autônoma, da qual derivou o meu TCC. E as fontes do Arquivo Público foram fundamentais para complementar essa documentação e ampliar minha pesquisa. Chegaram até mim por meio do guia de fontes “Documentos da Escravidão”. Como eu morava e estudava do interior, em Santa Cruz do Sul, e era bolsista em Rio Pardo, o acesso foi facilitado por essa disponibilidade online, ressaltando a importância da produção desses materiais. E foi por meio desse guia, o guia das alforrias, que eu iniciei meu contato com o Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Mais para frente, em 2007, já no final da graduação, consegui vir algumas vezes para cá para pesquisar, não só os documentos originais, mas também levantar outras fontes para elaborar o meu projeto de mestrado. Todo o meu mestrado eu passei aqui, foram dois anos de imersão profunda no Arquivo Público em que eu trabalhei não só então com as alforrias, mas também com os inventários, testamentos, processos crime. Depois eu trabalhei também com fontes da Cúria e do Arquivo Histórico, também fundamentais. Na tese eu retorno, depois de um bom tempo afastada daqui, porque acabei mudando de tema, abordagem e período, mas voltei para cá para olhar de forma mais qualitativa uma tipologia documental muito utilizada durante o mestrado e ressignificar também a fonte, no caso, os inventários post-mortem.

Eu creio que entre a sua dissertação e sua tese, a gente percebe uma nítida transição que não é do seu trabalho somente, mas é mais geral da historiografia, em que uma ênfase em aspectos estruturais cede lugar à atuação subjetiva dos sujeitos históricos. Isso não quer dizer que antes você desprezasse a atuação dos atores sociais, mas você mesma me disse uma vez que é muito diferente deduzir ela com os processos-crime, depoimentos, ou você ver diretamente as palavras das pessoas nos jornais, nas fontes dos jornais. Você concorda? Como você vê essa questão?

Então, eu concordo sim. É um processo, embora exista uma nítida ruptura, uma mudança bastante significativa, eu entendo como processo que acompanha a historiografia. Na dissertação eu fiz um trabalho bastante quantitativo, porque me inseri dentro de um debate historiográfico, de uma produção historiográfica, voltada a mostrar empiricamente, quantitativamente, o quão estrutural foi a presença de pessoas escravizadas no Rio Grande do Sul e como as lutas por liberdade estiveram sempre presentes. Trabalhei nessa dialética entre escravidão e liberdade a partir dessas fontes diversas, com um método quantitativo. O cruzamento nominal foi fundamental para eu chegar em algumas trajetórias e humanizar o processo, evidenciando experiências e agências. No doutorado, passei a trabalhar com imprensa negra e buscar a trajetória dos fundadores e apoiadores [do jornal O Exemplo], levando a uma mudança da perspectiva de análise. Se antes eu chegava às histórias por meio da quantificação, digamos assim, por meio da serialização de fontes localizava alguns casos, algumas histórias que se destacavam, e ia buscando fontes e cruzando para compor essas trajetórias, na tese foi um processo contrário. Eu tinha alguns nomes, nomes completos, inclusive, porque na dissertação acabei, por contas dos homônimos e da ausência de sobrenomes, realizar a busca nominal a partir nome do proprietário de pessoas. Na tese, ao me dedicar a compreender a formação do grupo que fundou o jornal O Exemplo em 1892, eu pude buscar pelo nome próprio das pessoas nas fontes. Enfim, se na dissertação as trajetórias foram emergindo da serialização das fontes, na tese elas foram o ponto de partida e marcaram meu retorno ao APERS. Por meio dos nomes dos fundadores de O Exemplo e seus familiares pude encontrar inventários, testamentos e outras fontes para recompor suas trajetórias. Também fontes de outros arquivos, como a Cúria e o Arquivo Histórico, se somaram a isso. Então sim, houve uma mudança e eu diria que muita influenciada pelos trabalhos do campo do pós-Abolição, com destaque à tese da Ana Flávia Magalhães Pinto, que lança o desafio de a gente rever a lente de análise, o foco, as perguntas, nos estudos sobre experiências negras no Brasil oitocentista. Ou seja, ao invés de partir da escravidão, partir da liberdade. Mediada por novas leituras e propostas de trabalho, voltei para o século XIX, para o período que trabalhei na dissertação, mas olhando para as fontes pelo viés da liberdade. Todos os fundadores do jornal O Exemplo nasceram livres em tempos de escravidão. Até o momento identifiquei que somente o pai de dois dos fundadores, Calisto Felizardo de Araújo, passou pela experiência da escravidão. Ainda assim, o foco recaiu sobre a forma como ele foi construindo sua liberdade desde os tempos de escravidão no espaço urbano de Porto Alegre, entre meados do XIX até as primeiras décadas do XX. Isso para ficar em apenas um exemplo.

2020.03.04 - Melina

Uma questão que tenho para você é a seguinte: boa parte do impulso de uma história quantitativa e serial no Rio Grande do Sul tem a ver com as fontes do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul como inventários, alforrias… Então essas fontes são tidas como preferenciais na análise serial quantitativa. Como é que você vê o papel dessas fontes na reconstituição de trajetórias?

Bom, eu acho que já marquei um pouco disso na questão anterior. A análise quantitativa, serial, permitiu que eu demonstrasse em minha dissertação, por uma visão macro, estrutural, o peso da escravidão até sua derrocada final, mas também da liberdade negra desde o século XVIII na sociedade sul-rio-grandense. Basta ver os trabalhos do [Luís Augusto Ebling] Farinatti, da Helen [Osório], do Paulo [Roberto Staudt Moreira], do Thiago [Leitão Araujo], da Sherol [dos Santos], do Jônatas [Marques Caratti], do Jovani [Scherer], do Gabriel [Santos Berute], do Marcelo [Santos Matheus], da Natalia [Garcia Pinto], do Leandro [Goya Fontella], do Luciano [Costa Gomes], da Bruna [Emerim Krob], do Matheus [Batalha Bom], dentre tantos outros. Todo esse conjunto de trabalhos apresenta trajetórias e/ou experiências de pessoas negras, em parte, reconstruídas a partir de informações contidas em inventários, mas também alforrias, documentos de compra e venda etc. Se os resultados de análises quantitativas vindos deste trabalhos nos ajudam a pensar na presença negra mais em termos estruturais, não só na escravidão, mas também na liberdade, percebo que os trabalhos de hoje tem avançado em termos de problemas e abordagens. Não há mais a necessidade de provar empiricamente, serializar a documentação para provar que houve escravidão e que a liberdade sempre esteve presente, ou mostrar quantitativamente o predomínio e o protagonismo de mulheres negras buscando a liberdade, de que elas estavam majoritariamente no mundo do trabalho doméstico, por exemplo. Hoje a gente já parte desse dado, como um dado comprovado, que demanda que se refine e sofistique as questões e abordagens. Como exemplo os trabalhos que têm sofisticado a análise a partir das intersecções de gênero, raça e classe, do aporte teórico-metodológico de feministas negras, do pensamento de mulheres negras. Ainda que em diálogo com as produções anteriores, acordada sobretudo em E. P. Thompson, estes novos trabalhos certamente marcam uma nova inflexão historiográfica e informam formas outras de ler uma fonte, de perceber elementos em uma fonte, e produzir análises e resultados bastante diferentes, ainda que em diálogo. Então, respondendo à pergunta, as diversas peças que compõem um inventários viabilizam que acessemos informações qualitativas valiosas para o estudo de trajetórias, seja na escravidão ou na liberdade, e hoje presenciamos uma importante inflexão teórico-metodológica.

Quais fontes mais especificamente você usou nessa análise qualitativa? Você mencionou os inventários… E o que mais?

Então, aqui no Arquivo eu acabei buscando nominalmente – também é outro recurso bem importante que o Arquivo disponibiliza que é a busca nominal no site. Com auxílio deste recurso encontrei os inventários de apoiadores e fundadores do jornal, os testamentos que estão anexos aos inventários, também documentação de despejo, no pós-Abolição, inclusive você me ajudou a localizar esses documentos, que envolvem a irmã de dois dos fundadores de O Exemplo. Também encontrei outra ação de despejo, realizada pelo patriarca desta família, citado anteriormente, na década de 1880. Por meio desses despejos temos também os arranjos de moradia e as dificuldades de materiais de existência que a população negra enfrentou, mas também a formação de patrimônio e as possiblidades de renda e sobrevivência. Eu acho que foram essas fontes, que eu me lembro agora.

Queria pedir para falar um pouco sobre o “Exemplo”, porque quem vai ler a entrevista não está conhecendo o seu trabalho. Então queria lhe pedir para falar um pouco desse jornal.

Então, o jornal O Exemplo surgiu em Porto Alegre em 1892, bem no finalzinho do ano, sob iniciativa de oito jovens homens negros ou “homens de cor”, que era forma como eles se autonomeavam, se autoidentificavam, na barbaria do Calisto Felizardo de Araújo que, por sua vez, é um desses caras que consegui reconstituir e que venho reconstituindo a trajetória no pós-doutorado. Dois filhos dele, que também eram barbeiros, participaram da fundação, que é o Esperidião e o Florêncio Calisto. Também se fizeram presentes o Aurélio Júnior e o Sérgio de Bittencourt, dois filhos do Aurélio Viríssimo de Bittencourt, que o professor Paulo Moreira tem biografado,1 e outros quatro jovens “homens de cor” (Marcílio Freitas, Alfredo Souza, Arthur de Andrade e Arthur Gama). O projeto, o programa do jornal, era “defesa de nossa classe e o aperfeiçoamento de nossos medíocres conhecimentos”, que se desdobrou basicamente na luta contra o preconceito de cor e a luta por instrução. Esta última pode ser compreendida como a luta pela massificação do ensino, porque eles entendiam que a instrução seria a via de melhorar a condição da população negra no pós-Abolição, viabilizando o acesso a direitos ou a conquistas de direitos, como a cidadania política, mas também de lutar contra todos os males do preconceito de cor e erradicá-lo. Porque no entendimento deles, aí pensando na maneira como manejavam a ideia de raça, a raça não era algo que conferia uma diferença inata, a raça era uma construção social. Então na medida em que os “homens de cor”, para além deles, também se instruíssem, porque todo mundo era capaz de alcançar os saberes, bastando pra isso a oportunidade, todo o preconceito de cor cairia por terra Por meio de O Exemplo pretendiam mostrar que um homem negro também era capaz de aprender, bastando para isso oportunidade e condições de permanência. Associando instrução e cidadania eles construíam, manejavam, politizavam ideias de raça, e aqui localizo todo debate em torno da racialização. Nesse sentido, a luta registrada em O Exemplo era uma luta por direitos, por cidadania, por humanidade. Era, enfim, um projeto civilizatório, de humanidade, que eles tinham em vista, que eles encabeçaram por meio de O Exemplo. O jornal durou até 1930, teve várias pessoas que participaram, vários grupos que foram constituindo esse projeto e alguns desses nomes que fundaram seguiram por um bom tempo, ainda que com renovações no quadro. Um deles é o Esperidião Calisto, que é filho do já referido Calisto Felizardo de Araújo, proprietário do estabelecimento onde se deu a fundação do jornal. Então, se num primeiro momento a gente tem esse grupo mais reunido em torno desse coletivo formado pelos filhos do Calisto, pelos filhos do Aurélio, um funcionário dos Correios e um funcionário da Alfândega, um funcionário do Tesouro, um da Santa Casa, depois tem a entrada de militantes do movimento operário, mostrando também a aproximação das lutas promovidas por grupos negros instruídos e que viam no funcionalismo público um espaço de inserção profissional, com as lutas promovidas por homens negros operários e professores, inseridos no movimento operário. O Tácito Pires, por exemplo, aparece na historiografia do trabalho, mas não como homem negro e no O Exemplo a questão racial é por ele marcada o tempo todo. Tácito Pires era socialista e por meio dele é possível perceber como o socialismo informou e atualizou o projeto de O Exemplo, marcando o lugar do negro como um trabalhador do pós-Abolição e as especificidades que a raça conferia a essa condição. Este último ponto viabiliza ainda tensionar a prevalência da classe sobre a raça nos estudos sobre história do trabalho. A trajetória de Tácito Pires ajuda a problematizar a intersecção de classe e raça. A gente tem a entrada dos anarquistas também. Com o passar do tempo, outros grupos, outros vieses ideológicos informam o projeto. Então, em resumo, O Exemplo é um projeto múltiplo, plural, composto por pessoas com diferentes trajetórias, diferentes projetos, mas que se unem em torno de uma causa que é a luta contra o preconceito de cor e por instrução, por direitos e humanidade, fora outras bandeiras que acabam se somando.

Confira na semana que vem a segunda parte da entrevista com a historiadora Melina Kleinert Perussatto!

1 MOREIRA, Paulo R. Staudt; BITTENCOURT, Aurélio Viríssimo de. Burocracia, política e devoção. In: GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio (org.) Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-Abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011. p. 83-107. MOREIRA, Paulo R. Staudt. O Aurélio era preto: trabalho, associativismo e capital relacional na trajetória de um homem pardo no Brasil Imperial e Republicano. Estudos Ibero-Americanos, v. 40, n. 1, p. 85-127, jan-jun. 2014.

TransENEM realiza formação de professores no APERS

Deixe um comentário

No sábado, dia 15 de fevereiro, o TransENEM, Coletivo pela Educação Popular, reuniu-se nas dependências do Arquivo Público. Sua atuação tem como objetivo oportunizar o acesso de pessoas trans ao ensino superior, tendo, a partir de 2017, acolhido também pessoas LGBTQI+ cisgêneras.

bandeira_trans

Para quem não sabe, pessoa transgênera é aquela que não se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer, ao passo que pessoa cisgênera é aquela que se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer.

No Auditório Marcos Justo Tramontini ocorreram atividades de formação de professores, discussões pedagógicas por área de conhecimento e encaminhamentos organizativos. Destaque para a fala do professor Blue Mariro, que tratou do tema “Ensino e acessibilidade: para além da teoria”.

O blog do APERS conversou com Alef de Oliveira Lima, Professor de Sociologia do Coletivo pela Educação Popular TransENEM POA, com Caio de Souza Tedesco, Professor de História e organizador do Coletivo pela Educação Popular TransENEM POA, e com Claudia Penalvo, pedagoga e fundadora do Coletivo pela Educação Popular TransENEM POA .

1) Vocês podem explicar os aspectos pelos quais a transfobia dificulta enormemente o acesso de pessoas trans ao ensino superior?

Alef – A transfobia é um tipo de violência estrutural, portanto, ela tem uma dimensão difusa. Quem não é uma Pessoa Trans vai ter dificuldades de entender um conjunto de micro-agressões cotidianas, frequentes e naturalizadas. Quando pensamos um ciclo de vulnerabilização das Pessoas Trans, estamos apontando que, por exemplo, a escola enquanto instituição social apresenta uma série de resistências para compreender as singularidades desse recorte populacional: a não garantia do nome social, a defesa de ideias cisheteronormativas (implicitamente), a naturalização das relações heterossexuais e a invisibilização do debate das identidades de gênero. Essa resistência é o principal aspecto de uma espécie de transfobia escolar. Se você frequenta um espaço que despreza ou apaga a sua identidade é comum que se opte pelo abandono desse lugar. A evasão de Pessoas Trans e sua intermitência na vida estudantil encampa justamente a dificuldade de acessar o ensino superior, porque esses sujeitos e sujeitas não alçam em completude todas as etapas da educação básica no Brasil. Em resumo: Pessoas Trans não ocupam, não ingressam nas universidades porque são evadidas da escola; depois, se começa a tentativa de conseguir um emprego formal que também é dificultado pela ausência de qualificação. Dessa forma, você verifica um ciclo vicioso que precariza a vida dessas Pessoas.

2) O que é o TransENEM e quais suas propostas e práticas para modificar essa situação?

Caio – O TransENEM é um coletivo de Educação Popular, que atualmente oferece um curso pré-ENCCEJA (para a conclusão do Ensino Médio), pré-ENEM e pré-vestibulares. Fundado em 2015, a partir de reuniões de elaboração do coletivo, iniciou as aulas em abril de 2016. Na época, funcionava como um curso pré-ENEM exclusivo para pessoas Trans – mulheres e homens transexuais, pessoas transgêneras não-binárias, mulheres travestis e transgêneres num geral. Todavia, a partir de outubro 2017 passou a acolher pessoas LGBTQI+ cisgêneras.

A própria criação do TransENEM é uma proposta para modificar essa situação, pois funciona como um espaço de Educação não-formal alternativo, buscando proporcionar um espaço de ensino-aprendizagem acolhedor e seguro para a população LGBTQI+, tendo em vista as questões mencionadas acima, das inúmeras violências físicas, psicológicas, simbólicas que pessoas LGBTQI+, sobretudo Trans, costumam sofrer nas escolas.

Tem duas frases que ex-alunes falaram no ano passado, que acredito possam elucidar isto. Primeiro, uma ex-aluna, ao ser questionada do que era o TransENEM para ela, respondeu “é um espaço”, e explicou a resposta curta, por ser um espaço no qual ela podia existir. No país que mais assassina pessoas transgêneras no mundo, isso é extremamente significativo. Ainda, outro aluno comentou, no decorrer de uma atividade, que não apenas se formou no Ensino Médio, mas “agora eu tenho um futuro e sonhos”.

3) A presença de professoras e professores trans gera uma identificação com alunas e alunos? Até que ponto isso facilita o aprendizado?

Alef e Claudia – Sim, a presença de professores Trans favorece a construção de regimes de identificação e representatividade. Trata-se, de compreender uma espécie de pedagogia do exemplo. Muitas vezes os/as alunes trazem história de desprezo e apagamento, e o próprio TransENEM se torna um vetor de desconstrução e acolhimento e favorece a produção de identidades positivadas.  Na medida em que se constrói um ambiente que favorece o bem-estar social e o respeito às Pessoas Trans, se inicia também formas de enfrentamento contra estigmas de aprendizagem. Isto é, existindo a respeito podemos aprofundar e desenvolver habilidades e competências dos/as/es nossos/as/es alunes de modo a contemplar um conhecimento socialmente situado que tenha sentido para todos. Não é apenas dizer que existe o ADC 26 (Ação de Inconstitucionalidade Direta para casos de homofobia e transfobia) é compreender como o documento nasce de uma luta social e por quais modos pode ser acionado, por exemplo, quando se faz um Boletim de Ocorrência em qualquer delegacia do país. Assim, se entende a aprendizagem enquanto um campo de prática. Dessa forma, entende-se que a prática educativa é uma prática política, antes de qualquer questão.

Caio – Enquanto professor trans, acredito que sim. É uma identificação que eu não tive durante a escola ou na graduação. O mais próximo que cheguei foi a professoras ou professores homossexuais, e já foi significativo.

Penso que a docência enquanto transgênero traz consigo alguns desafios que um(a) docente cis não passa, devido ao marcador de diferença, da transfobia e da ininteligibilidade/abjeção do corpo trans, que é um corpo que fala por si para além da cisnormatividade, da pretensa “normalidade”. Em outros contextos que não o TransENEM, isso traz consigo uma espécie de quebra e desestabilização das relações de poder, pois a pessoa trans, que supostamente estaria marginalizada, ocupa a posição de poder na relação professorie-alune.

Contudo, no contexto do TransENEM, há identificação, visibilidade, reconhecimento e empoderamento. E alune trans pode se enxergar numa posição de poder, pode se vislumbrar para além das margens. Além de ter como e professorie trans ume aliade, alguém com quem compartilhar situações e realizar trocas que com pessoas cisgêneras não seria possível pela falta de vivência em comum. Nesse sentido, ser docente trans para alunes trans é uma grande responsabilidade, também, pois não há muites professories transgêneres no coletivo. Atualmente somos quatro, ano passado fomos dois.

Também acho interessante mencionar que pessoas trans entram no coletivo, enquanto organizadories e professories a fim de participar de um espaço trans que proporcione uma possibilidade de produção de si enquanto trans – para além do ativismo/militância. Eu mesmo tive no TransENEM abrigo antes de ter nome e, em 2017, enquanto atuava enquanto “professora de História”, convivi com alunes trans que me auxiliaram a me assumir e viver enquanto o homem que sou.

4) Existem discussões sobre políticas para projetos de manutenção das pessoas trans na universidade, evitando a evasão?

Alef e Claudia – A pergunta é complexa demais. O TransENEM não é uma política pública educacional, trabalhamos na ausência dela e por causa dessa ausência: que fique evidente. Esse ponto deve ser debatido por toda a sociedade, pelas escolas, pelo MEC, não apenas o TransENEM que faz parte da iniciativa civil. Mas, nesse ponto devemos admitir que o próprio Coletivo é um bom exemplo de uma política afirmativa para pessoas trans nos espaços educacionais. Nossa pauta serve, justamente, para demonstrar formas possíveis de acolhimento e respeito – estamos dispostes a conversar com escolas e outras organizações para pensar estratégias de acolhimento e de permanência escolar e universitária para pessoas transgêneras.

Capturar

Para conhecer melhor o TransENEM:

Instagram: @transenempoa

Facebook: https://www.facebook.com/transenempoa/

e-mail: transenempoa@gmail.com

Vakinha: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/transenem-porto-alegre-2018

Entrevista com Maíra Inês Vendrame – parte 2

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Na parte anterior da entrevista, Maíra Vendrame nos contou sobre sua trajetória de pesquisa. Confira continuação!

Maíra, a gente percebe no seu trabalho uma influência bastante significativa da micro-história. Queria lhe pedir para falar um pouco sobre isso.

Bom, como entra a micro-história na minha pesquisa? Eu acho que a fonte judicial ajudou nesse sentido… Quando eu comecei a olhar para a fonte judicial, me interessava muito mais por aquilo que passava despercebido nas falas das testemunhas. Eu me interessava muito pelos relatos dos réus, vítimas e depoentes, por aquilo que eles diziam sem perceber. Era um caminho para buscar entender o modo como eles entendiam o seu mundo, o que pensavam em relação à justiça. Aí a micro-história entra também nesse sentido, porque é olhar para esses depoentes e tentar buscar uma racionalidade, tentar buscar uma lógica, buscar entender quais eram as concepções de justiça. Também têm outros elementos da micro-história, se nós pensarmos na questão de redes, de tentar construir  as conexões entre esses indivíduos que vão aparecendo em vários processos e que vão se protegendo. Outra influência da micro-história é o cruzamento de fontes de  origens diversas para procurar complexificar mais essa realidade estudada, tentar entender outras motivações que levavam as pessoas a tal comportamento, a cometer um crime, a reagir de uma determinada forma. Quando eu li A Herança Imaterial,[1] não lembro exatamente qual o capítulo, do Giovanni Levi, teve um momento que me chamou muita a atenção, pois ele usa a expressão “tribunal de grupo”, quando apresenta uma história de uma camponesa do Piemonte, onde uma série de articulações privadas é realizada no momento em que está ocorrendo um embate judicial entre duas famílias. Bom, aí eu comecei a pensar no Sório e na formação de um tribunal de grupo quando da sua morte. Mas, também, eu fui ler outros trabalhos, que não foram traduzidos para o Brasil, mas que são trabalhos de historiadores contemporâneos a Giovanni Levi: Carlo Ginzburg e Edoardo Grendi, que estão discutindo a micro-história e uma história local na Itália. Eles vão pensar muito essa questão dos usos da justiça, dos usos que os camponeses vão fazer das esferas da instância judicial, os usos que eles vão fazer do recurso da justiça. Pensar a partir da lógica dessas pessoas. Junto com esses usos da justiça, eles estão discutindo também esses grupos em uma esfera comunitária, grupos de oposição que são formados a partir de laços parentais ou outros vínculos, e que vão entrar em disputa por poder. Eles vão não só pensar a questão judicial, mas eles estão pensando disputas por poder local, as parentelas, os vínculos que agregam essas pessoas, aquilo que também as afasta e o momento em que os vínculos vão ser acionados. Então, os trabalhos de micro-história irão auxiliar a pensar muitas dessas questões na minha pesquisa, a comunidade, o espaço local, essa configuração e cartografia social de uma determinada comunidade.

2020.02.12 Maíra

Eu queria lhe perguntar se você vê como uma coincidência ou uma coisa que tem relação com a outra, porque tenho a impressão de que à medida que você se aproxima da micro-história, você se aproxima das fontes do Arquivo Público. Você acha que há uma relação entre uma coisa e outra ou não?

Eu acho que sim. Eu acho que foi exatamente quando passei a me dedicar aos processos-crime de forma mais intensa, e isso ocorreu no doutorado, que eu me aproximo da micro-história. Porque esse pessoal que está discutindo micro-história lá na década de 1970 na Itália, eles estão dialogando também com as fontes judiciais. Eles estão pensando na comunidade, estão pensando em determinado território, eles estão discutindo, principalmente, com as fontes judiciais. Aí entra as cartoriais e entra também as paroquiais, mas muito as judiciais. Edoardo Grendi, por exemplo, toda sua obra a gente não tem traduzida para o Brasil, a gente conhece mais o Giovanni Levi e o Carlo Ginzburg, que vai trabalhar com processos inquisitoriais. Esse povo que está dialogando na década de 1970, vão trabalhar com as fontes judiciais. Eu acho que essa aproximação, agora, continua. A micro-história e os processos-crime continuam muito presentes na minha pesquisa, porque eu acho, não só os processos-crime, mas esses como fonte principal, pois a partir deles eu vou puxando outros fios que me levam para  novos documentos e  problemas de pesquisa. Essa história do Padre Sório e outros crimes que eu encontro na documentação, nos processos-crime, muito mais do que os delitos em si, a violência, e o quanto ele foi impactante para a época, o que interessa e o que procuro ver são os questionamentos que consigo tirar desses episódios. Por exemplo, no caso dos crimes que analisei, o importante é perceber essa justiça privada e os usos da justiça oficial que imigrantes e descendentes faziam, satisfazendo uma lógica de justiça própria. Então isso ultrapassa o mundo da região colonial, o mundo dos imigrantes, e aí a minha aproximação com a micro-história também me permite fazer isso. Enquanto método, ajuda a estabelecer relações e pensar para além do grupo dos imigrantes. Os questionamentos feitos através dos casos específicos envolvendo os imigrantes podem ser aplicados para entender os comportamentos em outras comunidades camponesas, em uma outra época, outro território. Então, o que eu consigo levar para além disso, além dessa comunidade, além desse crime, além desse conflito? Aí entra muito a discussão de escala. Uma pergunta para o geral, um problema para o geral, para uma história mais geral, que parte do micro, que parte de uma experiência sempre micro, que parte sempre de uma análise minuciosa de um caso e das relações entre aqueles indivíduos.

 

[1] LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Entrevista com Maíra Inês Vendrame – parte 1

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Maíra Ines Vendrame é professora de História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos desde 2015. É licenciada em História pelo Centro Universitário Franciscano (2004), mestre (2007) e doutora (2013) em história pela PUC-RS, com estágio na Università degli Studi di Genova. Realizou estágio pós-doutoral no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (2013-2015). Autora de “O poder na Aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre camponeses italianos (Brasil-Itália)” (Editora Óikos, 2016) e de “Lá éramos servos, aqui somos senhores: a organização dos imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martins (1878-1914)” (Editora UFSM, 2007). Recebeu prêmios no Brasil e no exterior, dentre os quais o prêmio ANPUH-RS de teses.

Maíra, eu queria começar lhe pedindo para falar um pouco sobre sua trajetória como pesquisadora.
Ok. Eu comecei a pesquisar já na graduação, tive um contato intenso com a documentação primária. Na graduação eu também tive contato com processos-crime, e depois vou utilizar essa fonte no mestrado e no doutorado. É uma fonte que eu vou me aproximando lentamente, muito por conta da minha orientadora, que era a Nikelen Witter, que trabalhou no seu mestrado com fonte criminal, com um processo-crime em especial. Iniciei a pesquisa pensando as crenças agrárias e pagãs entre os descendentes de imigrantes da Quarta Colônia. Aí, fui para as fontes criminais, mas eu não encontrava processos que me indicassem para essas questões, para essas crenças, para esses cultos agrários. Eu conseguia informações sobre eles a partir de outras fontes. Por isso, não me dediquei tanto às fontes criminais nesse primeiro período da graduação. Mas no mestrado, fui me aprofundando dentro da temática da imigração, que sempre foi meu interesse, trabalhar com o mundo dos imigrantes e descendentes italianos no Rio Grande do Sul. Algo que me incomodava na leitura dos livros era a maneira como a historiografia clássica tratava as regiões de colonização italiana. Sempre de uma forma muito apologética, laudatória, de uma maneira em que esse grupo imigrante era visto como um grupo muito ordeiro, religioso, trabalhador, católico e excessivamente católico. Nessa historiografia não havia conflitos. Eu não encontrava nessa historiografia as crenças pagãs também. É importante também dizer que a minha trajetória acadêmica está muito ligada ao mundo de onde eu venho. Cresci em uma comunidade de descendentes de imigrantes italianos, uma comunidade rural, então, eu trazia muitas perguntas que questionavam essa historiografia clássica. As experiências que tive na minha infância, na minha comunidade, que aparentemente é um mundo muito pacato, tranquilo, mas se você vive lá, se você passar lá uma semana, você começa a ver o quanto é um mundo permeado por tensões, conflitos, lógicas diferentes e dramas entre famílias e entre vizinhos que não são diferentes de uma outra realidade. No mestrado ainda, eu comecei a olhar a documentação do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, que me mostrava os imigrantes da colônia Silveira Martins. Essa colônia pertencia a Santa Maria. Essa documentação me mostrava que esses imigrantes davam muitos problemas para a municipalidade, principalmente nas questões de impostos, porque eles não queriam pagar impostos. Também se negavam a prestar serviço militar.

2020.02.05 - MaíraNão colaboravam com a conservação das estradas… Essas fontes da municipalidade, requerimentos, cartas, pedidos, me indicavam um mundo conflituoso. A partir daí, eu comecei a olhar para alguns processos-crime. No mestrado eu trabalhei com dois processos, um envolvendo alistamento militar. Esses imigrantes se negaram a se alistar e então se abriu um processo. O outro processo era em relação aos impostos. Então eu analisei esses dois processos, mas foram só esses. Toda essa documentação me indicava para esse mundo permeado por conflitos internos, tensões internas e também com o mundo externo, com a municipalidade de Santa Maria. Tudo isso questionava aquele ideal do imigrante ordeiro, pacífico e desejado. As autoridades não estavam tão felizes com os imigrantes da colônia Silveira Martins no seu início, eles estavam dando problemas, eles eram um problema, porque além de se revoltarem e não quererem pagar os impostos, eles viviam lá na Câmara Municipal fazendo solicitações. Isso, eu acho que eles trouxeram do seu país de origem, essa relação com as instâncias administrativas, essa demanda constante. Então, no mestrado, consegui questionar a historiografia clássica sobre a imigração italiana, que tratava as regiões de colonização italiana de forma harmônica e ordeira; e também perceber que existia um projeto de comunidade. Quando esses imigrantes vêm, eles trazem um projeto de criar comunidades autônomas. É por conta desse projeto autônomo de comunidade que vão ocorrer constantes conflitos internos entre as comunidades, de grupos de imigrantes com padres e entre grupos de comunidades diferentes, muitas vezes, tendo como liderança alguns sacerdotes. Mas o que significa um projeto autônomo de comunidade? É ter uma igreja. Ás vezes a gente vê 4 km de distância uma comunidade com uma igreja, uma capela, um padre residente; ter uma independência, ter seus comerciantes, seu centro, então era um pouco nesse sentido. É no doutorado que vou trabalhar de forma bastante intensa as fontes criminais. Também vou trabalhar com inventários e registros cartoriais, são todas fontes do Arquivo Público. Durante o doutorado, boa parte fiquei pesquisando no Arquivo Público, pois queria ver o imigrante no banco dos réus. Uma pergunta que eu me lembro lá da graduação: “Eu quero encontrar o imigrante no banco dos réus”, que pergunta boba. Só que, tinha um caso que ainda é muito conhecido na região da Quarta Colônia, que era história de um padre que havia sido morto numa das estradas da região colonial. “Eu tenho que encontrar esse processo, eu tenho que encontrar essa investigação!”, porque essa história ainda é contada. Esse padre foi encontrado ferido numa das estradas da região colonial, da colônia Silveira Martins, muito ferido, em dezembro de 1899. Ele é levado para casa paroquial e depois de três dias ele falece. A história desse padre já havia sido pesquisada pelo Luiz Eugênio Véscio, no livro O crime do padre Sorio. Nesse livro, Véscio procura analisar o conflito entre Igreja Católica e Maçonaria, tendo por base essa história do crime. Véscio levanta três versões sobre a morte do padre: uma é a versão da comunidade, que o padre teria sido atacado por um grupo de indivíduos e batido no baixo-ventre. Essa é uma versão muito forte ainda na região colonial. Outra, que o padre teria caído do cavalo. Essa é a versão oficial, o padre cai do cavalo e morre em consequência dos ferimentos. A outra versão é que o padre teria sido atacado pela Maçonaria, pelo grupo de Maçons da localidade. Véscio vai analisar essa última versão, busca entender como essa versão é construída na década de 1940, quando há um grande conflito entre Igreja Católica e Maçonaria. Essa história envolvendo a morte do padre Sório me instigava muito e eu queria entender o porquê dessa versão do crime no baixo-ventre. Em que contexto social e cultural surgiu essa explicação de que o padre teria sido alvo de uma emboscada e um crime onde a violência é no baixo-ventre? Porque na versão acreditada pela comunidade o padre teria abusado sexualmente de uma moça e por conta disso ele teria sido batido nas partes genitais. Sório vem a falecer, mas antes ele dita o seu testamento. No inventário é possível verificar que ele deixa muitos bens, que havia acumulado um patrimônio material e que era uma liderança local muito forte. Apesar disso, não localizei o processo-crime. Não tem processo-crime. O que eu faço? Como vou entender esse contexto social e cultural? Conhecei então a analisar outros crimes que ocorreram na região colonial, na colônia Silveira Martins; homicídios, agressões, defloramentos. Queria tentar entender um pouco esse contexto das punições, das vinganças, dos crimes de honra, honra familiar que é um dos temas que vou tratar na minha tese. Começo então a perceber que as emboscadas nas estradas eram muito frequentes. Atacar um indivíduo na estrada era uma forma de punição e a violência direta, a violência física era uma forma de resolução dos impasses nesse contexto colonial. Porém, tem algo que eu vou também perceber, mas que está ligado bastante à história do padre, não teve processo-crime, mas o padre ditou o testamento, mas não conseguiu assiná-lo. Ele foi assistido por sete testemunhas. Essas testemunhas eram lideranças locais. Eu comecei a me questionar se não teria havido uma espécie de tribunal de grupo, que teria impedido a abertura de uma investigação. Eu comecei a perceber que existiam elementos e indícios que poderiam solidificar essa minha hipótese. Indo para os processos-crime, começo a perceber que existia uma justiça privada, uma justiça paralela. Existiram práticas de justiça privadas, que eram resolvidas localmente, que passavam pela articulação familiar, da parentela, entre os vizinhos, e que muitas vezes se usava a justiça do Estado para conseguir resolver esses impasses privados. Então, eu entro nesse mundo, nesse mundo de práticas de justiça extraoficial e extrajudicial, mas que vão dialogar também com a justiça do Estado. Foi muito importante para mim, na minha pesquisa, o cruzamento de fontes e eu acho essencial cruzar processos-crime com outras fontes. Quando eu comecei a usar tal método, fazer uma análise qualitativa de alguns processos e confrontar com fontes cartoriais e paroquiais, percebi que enquanto um indivíduo estava respondendo no tribunal a uma denúncia, existia uma série de articulações na comunidade para resolver os impasses. Por exemplo, um acordo de pacificação firmado em cartório. Aí eu ia entender por que as partes não apareciam num último momento do processo-crime, ficando assim certos comportamentos mais claros para mim. O cruzamento de fontes me permitiu ver de forma mais clara essa articulação local quando surgiam impasses, quando surgiam conflitos que não conseguiam conter localmente.

2020.02.12 MaíraO conflito surge e decorre de uma série de pequenos embates e pequenas tensões que não são controladas. Tanto que no processo sempre aparecia as expressões “Questões antigas” e “Questões antigas, questões de honra familiar”, num processo de homicídio. O que é isso? Num determinado momento, a agressão entre as partes se tornava incontrolável, mas não era algo de momento como o processo deixa a entender; foi algo no bar, na estrada, os indivíduos se exaltaram, um feriu o outro; não era algo de momento, o confronto era a consequência de uma série de provocações e “questões antigas” que, muitas vezes, não aparecem de forma tão explícita naquele processo, naquele documento. Foi interessante também perceber, a partir da minha análise das fontes, que nessas regiões coloniais – e estou me referindo, principalmente, à região central do Estado –, existiam frentes de punição e proteção. Isso pude perceber através de vários processos-crime abertos na sequência, onde eu conseguir ver que os réus se repetiam na documentação, que os envolvidos se repetiam nesses processos. Comecei a perceber que existiam frentes de proteção e punição. O que são essas frentes? Grupos de famílias, vizinhos, aparentados que se reuniam para punir e se proteger quando necessário. Nesses casos, o tipo de punição variava quando era para alguém do grupo étnico e quando era para alguém do grupo negro, que era sempre mais agressiva. Aqui entram os linchamentos, e encontrei vários na região pesquisada. Vários linchamentos com os mesmos grupos de imigrantes envolvidos e, também, com a conivência das autoridades locais, com um certo “Vamos deixar eles fazerem a sua justiça”. Em relação a isso, eu comecei a me questionar também, que é algo que eu acho que foge do grupo étnico e que se pode levar para outras pesquisas, que é um pouco de como essa justiça republicana funcionava localmente. Ela funcionava obedecendo essas práticas locais e tradicionais de justiça. O delegado e o subdelegado deixavam os grupos resolverem seus conflitos, e isso dá para perceber através de alguns processos-crime, principalmente nos casos de linchamento contra negros. Chegavam atrasados para fazer o corpo de delito, não repetiam o inquérito para as autoridades distritais, é uma série de elementos que vai apontando para essa articulação local e a forma como essa justiça funcionava localmente. Voltando um pouco ao caso do Padre Sório, essas características que fui encontrando nesses processos-crime me ajudaram a ler melhor o que teria acontecido com o Padre. O silenciamento da comunidade e a formação de um tribunal de grupo que não permitiu a abertura do processo-crime e de uma investigação. Logo que o padre morreu, a versão oficial para a morte é queda do cavalo, mas existem registros de contemporâneos da época do padre que afirmam que existiam suspeitas de que o padre teria sido alvo de uma emboscada e “batido no baixo-ventre”. Então, existia essa explicação na época, só não teve processo-crime. Analisando a documentação, comecei a perceber que as autoridades distritais da colônia Silveira Martins, no momento da morte do padre, o subdelegado, o juiz distrital, que eram luso-brasileiros, e estavam vivendo um conflito com o Padre Sório, um conflito de poder local. Era um momento bastante tenso na comunidade, estavam ocorrendo eleições, o padre criticava o comportamento das autoridades públicas e incentivava os imigrantes a não comparecerem para votar. Então isso tudo indicava que para as autoridades locais era bom não abrir um processo e para a comunidade também. Porque aquilo era muito feio, o padre sofrer uma emboscada e morrer em consequência dos ferimentos no baixo-ventre, e ele morreu em consequência dos ferimentos no baixo-ventre. Para os imigrantes e descendentes, que eram do mesmo país, todos eles italianos, conterrâneos… e aí ela se fecha para se proteger. Então, tudo isso me levava a entender assim: essa comunidade era permeada por conflitos, todas elas são permeadas por conflitos, mas existem momentos em que a solidariedade vem também, onde elas acionam essa solidariedade. O padre tinha bases de apoio, redes fortes, que eu busquei construir na tese, redes parentais que foram construídas a partir dos registros de comparecimento na pia batismal como padrinho dos filhos dos imigrantes, além dos vínculos formados através de uma associação de mútuo socorro que ele próprio havia fundado. Então, no momento em que era necessário, essas se fizeram fortes, que foi quando da morte do padre e do silenciamento por parte de todos. Na minha tese de doutorado, apesar de eu ter pesquisado essa versão da emboscada e de um crime, um crime de honra, não busquei desvendar se realmente o padre foi “batido no baixo ventre”, ou castrado, por ter se envolvido sexualmente com um moça da região. Não foi possível perceber através das fontes escritas a prova definitiva que confirmassem a explicação do castramento. Para além disso, o que me interessava muito mais era entender onde teria surgido essa versão de um crime emboscada, esse mundo social e cultural, mais do que comprovar se realmente o padre teria sido castrado ou não. Mas é certo que o crime existiu, porque era num momento bastante tenso, o padre tinha muitos rivais. Se não foram os imigrantes por questões de honra familiar, foram as autoridades, imigrantes e luso-brasileiros por conta das tensões políticas locais naquele momento.

Confira, na próxima semana, a continuidade da entrevista com a historiadora Maíra Ines Vendrame.

Entrevista com Arlene Guimarães Foletto – parte III de III

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Na semana anterior, a historiadora Arlene Guimarães Foletto vinha explicando as relações entre as escalas macroscópica e microscópica em seu trabalho. Confira a parte final de sua entrevista!

Que pesquisas você tem feito mais recentemente aqui no Arquivo Público?

Então, a partir de 2011 quando eu estava no Instituto Federal, lá em Santa Catarina, comecei a desenvolver pesquisa com fontes primárias com os meus alunos de Ensino Médio, montamos um grupo de pesquisa, e digamos: “metemos as mãos nas fontes”. Inclusive, uma questão muito interessante, a ideia emergiu dos alunos, foram eles que me procuraram com objetivo de fazer pesquisa na área de História. Na época eu ainda estava enrolada com o final da tese, disse para eles que eu iria pensar e que dava retorno. Inicialmente começou com um grupo de três alunos, que logo virou sete. Comentei com eles que poderíamos trabalhar, mas como eu estava muito envolvida com as questões do doutorado, ir para outro espaço pesquisar seria difícil para mim. Então propus para eles que pesquisassem o espaço que eu já pesquisava. Na época tinha todo o tabelionato para Itaqui levantado e não estava utilizando tal fundo de uma forma quantitativa. Propus que começassem a trabalhar com as fontes notariais. A partir de 2011 os alunos foram se alternando, uns saíam, porque terminavam o curso, outros ingressavam… Entre 2011 e 2014 trabalhamos com o tabelionato: tabelamos a fonte e a partir daí fizemos uma série de estudos, desde a mercantilização da terra, arrendamento, sobre dívidas, hipotecas explorando o fundo notarial. Em alguns momentos eles vieram até o Arquivo para conhecer, para ver de onde havia saído aquele material que eles estavam trabalhando, em outros momentos a gente utilizava outras fontes daqui do Arquivo para complementar nossas análises, chegamos até a trabalhar com os processos-crime. Fazíamos todas as etapas de uma pesquisa de iniciação cientifica: transcreviam a fonte, tabelavam, liam textos pertinentes, discutíamos, analisavam os dados, escrevíamos… Apresentávamos os resultados, em diferentes eventos, sempre ganhando algum destaque. Isto enche o coração de qualquer professora de orgulho!!! Eram alunos do Ensino Médio sendo historiadores, sabe… Agora, eu não estou no IF, estou aqui no Colégio de Aplicação e neste ano eu consegui dar continuidade a este trabalho. Agora, no Aplicação, com autos de processos crimes, que é com o que estou trabalhando no pós-doutorado. A estudante que começou a trabalhar comigo, tem outra perspectiva, diferente da minha, quis trabalhar com a temática de gênero. E assim fizemos… Inclusive ganhamos destaque no Salão Jovem UFRGS. Bom, e eu, o que estou fazendo agora? Neste ano de 2019 foi a primeira vez que eu tive dedicação exclusiva para estudar. Então é a primeira vez que, digamos assim, eu consegui me dedicar ao ofício de historiar. Estou como pós-doutoranda da pós-graduação da UFRGS, trabalhando sob a supervisão do professor César Augusto Guazzelli, que foi meu orientador no doutorado e, mais uma vez dei outra guinada na temática que pesquiso. Sabe, eu teria uma quantidade significativa de possibilidades de pesquisa nas fontes que já tenho levantadas comigo. Mas não consegui ficar apenas com elas… Tive que retornar ao arquivo, fazer um novo levantamento, isto é mais forte que eu [risos]! Contudo, mantenho a ideia de rastrear trajetórias para chegar às redes de relações e à importância da qualidade, reciprocidade, dos vínculos para a construção de um capital relacional. Durante a própria tese me dei conta que seria muito efetivo perceber esta questão através dos autos criminais. Então, eu estou levantando todo o fundo criminal para a Paróquia de São Patrício de Itaqui, hoje já tenho 771 processos-crime levantados, no momento estou olhando todos e separando os que são considerados válidos de acordo com o critério que escolhi, ou seja, os que se passam no universo rural, ou envolvem indivíduos ligados a atividades rurais. O que eu quero com tal pesquisa? Quero ver se a elite cometia crimes, e quais eram eles. Eu continuo tentando estudar de uma forma mais efetiva como o grupo que monopolizou a terra, gado, cargos militares e agora, também nesta nova perspectiva, cargos políticos e judiciários, se envolvia com a prática de atos tidos como ilícitos a partir do Código Criminal do Império. Também almejo tentar perceber o comportamento da Justiça em relação da posição das partes dentro da hierarquia social, como essa se comportava de acordo com posição dos envolvidos, sempre mantendo o foco nos membros da elite local. É bastante coisa, os números estão se mostrando bem significativos. Escolhi este enfoque porque praticamente não temos estudos que mostrem a(s) elite(s) cometendo crimes e caindo consequentemente nas malhas da Justiça. A maior parte dos estudos dentro do crime e da criminalidade se dedicou a trabalhar com o com os grupos “de baixo”, da hierarquia social. São trabalhos sensacionais, que deram “voz” a uma gama variada de indivíduos, suas vontades, suas estratégias cotidianas….

2020.01.22 Arlene Guimaraes

Tendo contato com esta historiografia, e a partir de estudos clássicos dentro da área, que resolvi então pensar a elite local, utilizando o conceito de criminalidade, mas também tendo como perspectiva o conceito de impunidade. Qualquer semelhança desses autos com a nossa realidade, provavelmente, não é mera coincidência. A elite, sim, está presente na amostra, e é numa parcela bastante significativa. Neste segundo semestre, além do levantamento, comecei a tabular tais dados. Como exemplo: apenas uma das famílias que pretendo continuar rastreando está presente em 9,5% dessa amostra dos autos criminais. É muita coisa! Só uma família, sem ir para a parentela, amigos e subordinados. O que indica que a porcentagem aumentará na medida em que os nomes dos autos criminais forem cruzados com outras bases quantitativas que já tenho: batismos, casamentos, registros paroquiais de terras, listas da Guarda Nacional, listas de votantes e votados da câmara, com vereadores e juiz de paz, tabelionato. Assim, podemos ver compadres, alianças matrimoniais, vizinhos, subordinados, amigos e se os vínculos se tornavam efetivos no momento eu que a Justiça “entrava no meio”…

Muito abigeato?

Pois então, “quando eu fui para o crime”, partindo dos números encontrados pela Mariana Thompson Flores, eu esperava que o número de furto de gado fosse maior, tanto é que o projeto do pós-doc é sobre furto de gado. Claro que esta prática era também corriqueira, durante a segunda metade dos oitocentos, do outro lado do rio Ibicuí. Contudo, a maior parte dos processos é de homicídios, tentativas de homicídios, ferimentos. Apesar de estarmos em outro momento, melhor dizendo, de em tese estarmos em uma sociedade capitalista onde os delitos e as formas de punição, discutidas pelos ilustrados da época e previstas em leis já retratam outro modelo, ao que tudo indica, no microcosmos as coisas ainda eram resolvidas ainda no corpo, digamos assim… Sabemos que a construção do Estado carregava consigo uma série de ambiguidades. Apesar de o Código Criminal ser considerado avançado para o período, ter servido de exemplo inclusive para outros Estados, ele carregou consigo a escravidão. Isto deve ser levado em consideração, em conjunto com a manutenção do status quo, uma contradição e tanto para uma sociedade que se pretendia moderna e civilizada, e obviamente isto se refletia nas relações tanto entre os indivíduos como nas instituições. Bom, acho melhor parar, caso contrário não vamos concluir… Mas se ainda tiver um tempinho, gostaria de mencionar que no momento encontro-me com uma grande dúvida: penso que talvez tenha encontrado um “excepcional-normal”. Mais uma vez o Arquivo me deu um presente. É o caso do Lucidoro Camarú. Um [processo de] homicídio composto por cinco volumes. Só o inquérito policial deste processo conta com quarenta e sete testemunhas! Ele é do final do Império, de 1889. Quando eu comecei a olhar esse processo eu pensei: “não, vou ter que parar a pesquisa para pensar um pouquinho sobre isso”. Resolvi, então, ir até 1890 para fechar redondinho o período. Abri mais algumas caixas para terminar a amostra, e acabei localizando uma tentativa de homicídio, contra o mesmo indivíduo. Até brinquei com o pessoal lá da sala de pesquisa: “Como assim? Tentaram matar um morto?” Possivelmente, quando os processos chegaram até ao arquivo, foram catalogados fora da ordem, assim pela numeração, ele foi arquivado depois. Contudo, quatro meses antes no mesmo ano de 1889, tentaram matar o Camarú, e este auto, tem dois volumes. Assim, entre tentativa e êxito, temos sete volumes. Número considerável para os padrões da época. Óbvio que ambos os processos “conversam” entre si. A vítima, Camarú, era um jornalista republicano, provavelmente mestiço, que montou uma tipografia e começa a incomodar a elite local através das notas contidas em seu periódico, às vezes por mencionar nomes, às vezes por fazer crônicas, às vezes por aparentemente apenas noticiar as decisões da Câmara Municipal. Na tentativa de homicídio, o promotor e o delegado estão envolvidos como mandatários. Os que praticaram o ato, em algum momento foram subordinados a eles ou a outros membros da elite, então os vínculos de clientelagem aparecem. No homicídio em si, são praças de polícia e da marinha que cometem o assassinato a mando de membros da elite local, que além de ter terras e rebanhos, tinham patente militar e atuavam na política, justiça e polícia. E ainda mais, sabe aquela família que mencionei na outra pergunta? Então, ela esta envolvida também neste caso! É interessante perceber como o judiciário foi se organizando enquanto instituição ramificada aos quatro cantos ao longo do século XIX e como a elite local foi construir suas estratégias para não ficar de fora do arranjo institucional, deste outro tentáculo não tão invisível do Estado. E isto que acabei de mencionar aparece tanto na amostra feita através da totalidade dos processos crime, quanto nesse caso “excepcional” que comentei. Tanto em uma quanto em outra perspectiva metodológica que a pesquisa me permitir consolidar, ao que tudo indica vai ser possível reconstruir as redes de relações das melhores famílias da terra no momento em que elas cometiam atos ilícitos e como os membros da Justiça tomavam suas decisões quando os interesses da elite local estava em jogo.

Então tá, Arlene, agradeço pela entrevista.

Eu que agradeço a vocês. Que 2020 seja mais leve para todes nós!!!

Entrevista com Arlene Guimarães Foletto – parte II de III

Deixe um comentário

logo apers entrevista

No trecho da entrevista publicado na semana anterior, Arlene Guimarães Foletto vinha nos falando sobre as temáticas de sua dissertação e de sua tese de doutorado. Confira a continuação!

Eu queria perguntar se você vê uma reorientação metodológica entre os dois trabalhos, das estruturas agrárias para as trajetórias, da análise serial para o método onomástico e análise estrutural de redes sociais, da riqueza material à riqueza imaterial. O que você vê de continuidade e descontinuidade entre essas duas metodologias e temáticas?

Para mim foi um pouco difícil. Eu tenho “um pé” muito forte no quantitativo, admiro o pessoal que trabalha com um processo, uma fonte e dali escreve histórias maravilhosas. A minha referência é quantitativa. Sofri muito durante o doutorado por eu não conseguir fazer essa base quantitativa, ela ficava me faltando, digamos assim. A intenção era ter feito uma base quantitativa, para daí então poder perceber, selecionar as trajetórias e as relações de uma forma mais ampla. São métodos, sim, diferentes, mas, para mim, sempre se complementam. De certa forma, quando fui rastrear as trajetórias a partir de uma gama variada de fontes que foram sendo levantas ao longo da pesquisa, por inúmeras vezes, voltava para minha base quantitativa do mestrado para dar um maior significado as mesmas. Sabemos que para estudos de ciclos de vida familiares e para perceber as relações, os Registros Paroquiais de Batismos são de extrema importância, e com eles pode se fazer uma boa base quantitativa. Contudo, tive muita dificuldade em acessar tais fontes na Mitra Diocesana de Uruguaiana… Fazendo um parêntese: quando montei o projeto de doutorado, eu tinha consultado a Mitra sobre a possibilidade de pesquisar os registros de batismo da região e eles tinham me dado autorização. Quando ingressei no doutorado, retomei o contato a fim de ir até Uruguaiana pesquisar. Só que nesse ínterim havia mudado o bispo, e o novo me negou o acesso. Chegou a fase da qualificação e os professores pontuaram que seria importante eu acessar os registros de Batismo. Mais uma vez entramos em contato com a Mitra, fizemos documentos, enfim, mas a negativa se mantinha. Diante de tal situação, as fontes do Arquivo Público tiveram um papel ainda maior na pesquisa. Fiquei pensando como resolver esse problema. Neste momento, tive uma ajuda muito grande do pessoal do Arquivo. Comecei a mapear essas pessoas nas diferentes fontes documentais disponíveis aqui do Arquivo, não só com aquilo que é usual para nós, inventários, processos-crime, tabelionato… e passei a consultar todos os registros cíveis, digamos assim. Foi a partir do potencial do Arquivo que consegui mapear parte das trajetórias e das relações das famílias que analisava na época. Mas retomando a sua pergunta: a ideia de ir para as relações tinha como objetivo poder perceber um pouco mais da dinâmica da própria sociedade, os indivíduos, das famílias e de suas estratégias dentro das possibilidades da estrutura, digamos assim. Quando você faz uma amostragem, nem sempre você consegue perceber tal dinâmica. Como eu não consegui fazer a prosopografia, pensei na época: “bom, vou ter que ampliar a leitura, vou ter que ir para outras paragens”. Comecei a buscar outros autores, isso no primeiro semestre do doutorado, e foi nesse ínterim que descobri o José María Imízcoz Beunza. Ele trabalha com a ideia de capital relacional dentro de uma perspectiva denominada análise estrutural de rede social. Assim, a ideia era meio que perceber o movimento desses indivíduos, das suas famílias e como eles se relacionavam com o todo, através dos vínculos, das relações. De certa forma, a própria micro-história trabalha de maneira semelhante. Para conseguir colocar em prática a empreitada, como não tinha sido possível fazer a prosopografia, acabei utilizando o método onomástico. Inclusive, foi “O nome e o como”1 que me ajudou a selecionar as três famílias. Para trabalhar com família de uma forma geral, eram extremamente importantes os registros de batismo para aquilo que eu pretendia perceber. Na ausência destes, busquei as três famílias em todo tipo de documentação, com objetivo de tentar conseguir montar as trajetórias e perceber as relações de tais famílias, onde elas circulavam, com quem se relacionavam, se os vínculos que estabeleciam carregam consigo a reciprocidade necessária para enfrentar questões da vida cotidiana. O capital material que eles possuíam e cada família acumulava, ou não, ao longo das gerações, eu já tinha efetivamente mapeado. Então eu estava atrás do tal capital imaterial, ou melhor, do capital relacional dessas famílias e nesse sentido, o conjunto de fontes levantado foi de extrema importância para perceber os vínculos de parentesco, os vínculos de amizades, de vizinhança, clientelares. E tal rede foi emergindo a partir de diferentes fontes documentais, preservadas aqui. Aos 47 minutos do segundo tempo, como costumo dizer, quando já estava na prorrogação da tese, mudou novamente o bispo de Uruguaiana e nós, mais uma vez, tentamos acessar os registros de batismos e dessa vez conseguimos. Eu lembro que fui entre o Natal e o Ano Novo lá para Uruguaiana, um calor, e levantei todos os registros, em cinco dias, com medo que mudassem de ideia. Com isto sentido que demorei um pouquinho mais, que o usual, para concluir a tese. O que aconteceu? Eu continuei utilizando a base quantitativa que eu tinha do mestrado, a que vinha dos Registros Paroquiais de Terras, outra que vinha da amostra de inventários post-mortem, outra vinha da relação dos estancieiros, mais a que vinha de listas da Guarda Nacional, tanto da reserva quanto do alto comando da guarda nacional e incorporei os Registros Notariais como uma base quantitativa também e, por último, os Registros de Batismos. Nesse conjunto muito variado de fontes, digamos assim, foi possível então perceber tanto a trajetória dos indivíduos, quanto da suas famílias e de sua família mais extensa, da sua própria da parentela. A família do XIX também tem essa organização. A forma com que cada uma dessas famílias construiu seu capital relacional fez diferença para se manter enquanto elite, mantendo o capital material dentro da própria família. Sabemos que se tornar elite, conseguir uma ascensão econômica é uma coisa; a família se manter como elite ao longo das gerações vai perpassar por diferentes estratégias que podem ser vistas no momento de sucessão, mas que fica mais perceptível nas teias das relações onde se pode perceber o capital relacional que a família acumulou ao longo do tempo, e a manteve no topo da hierarquia social. Dito isto, para concluir melhor o que tu me perguntaste, penso que os métodos se completam, nem sempre temos tempo hábil para conseguir utilizar os dois, mas é uma boa estratégia de pesquisa.

2020.01.15 - Arlene

Isso é uma coisa interessante que você estava falando, é que de certa forma você chega aos documentos a partir dos nomes das famílias. Pega os nomes dos indivíduos e das pessoas que compunham aquela família e chega nos diferentes tipos documentais do Arquivo Público. É um caminho um pouco diferente do que muitos historiadores fazem, pegam uma amostra de inventários e chegam em alguns indivíduos, você pega alguns indivíduos e chega a uma diversidade de documentos. Como é que você vê a riqueza de fontes do Arquivo Público que muitas vezes não são exploradas pelos historiadores?

É interessante você levantar isso, porque é uma coisa que fico me perguntando também. A forma como fiz os meus recortes nem sempre foram das maneiras mais convencionais. Mesmo considerando o tripé: status, poder e riqueza, definido por Peter Burke, que sustenta a(s) elite(s), eu parti de um recorte econômico, e não político como a maioria. Claro que não desconsidero a importância da capacidade política e, lógico que ela vai estar ligada também à questão da hierarquia social. Assim, acabei fazendo um recorte um pouco diferente. Como eu tinha aquelas amostras de inventários e os Registros de Terras, conhecia de certa forma a estrutura, conhecia os números, digamos assim. Tinha como saber quem ocupava o topo, quem eram os famosos estancieiros-militares da localidade. Então eu utilizei o critério: rebanho, terra e patente para selecionar os indivíduos e suas famílias, e através do método onomástico comecei a rastreá-los. Como eu não tinha os batismos que eram necessários, tentei buscar uma estratégia que suprisse tal ausência, para então chegar às relações. Então, foi para tentar perceber as relações que davam suporte à elite agrária local que me “joguei” para os diferentes corpos documentais dentro do arquivo. Há infinitas possibilidades, né? Eu lembro, na época, o Jorge [Miranda da Silva, funcionário do Arquivo Público] me ajudar a achar inclusive as atas dos juízes de paz, que era algo que ainda não tinha sido explorado e até agora também, e que estava aqui, guardadinho em uma estante. O Jorge, e outros funcionários, me ajudaram muito! Baixávamos maços e mais maços, e às vezes não encontrávamos nenhum auto que fosse útil, diretamente, para a pesquisa. Então, como eu disse lá no início, o Arquivo me fez pesquisadora, e acho que continuo pesquisadora em relação à capacidade desse Arquivo.

Na sua dissertação você fez o mapeamento do macro e depois partiu para uma escala mais micro. Eu queria perguntar é se você vê uma coisa como pré requisito da outra?

Eu devo, também, um pouco da minha trajetória ao Giovanni Levi. Eu tive o contato a Herança Imaterial antes da Herança Imaterial2 ser “A” Herança Imaterial para nós, digamos assim, isto foi… no início da minha trajetória como pesquisadora também, então algumas coisas caminharam juntas. Escolhi Itaqui, Freud explica [Arlene é natural de Itaqui], mas parte desta culpa está relacionada com a leitura de Levi. Ele me mostrou que você pode fazer História em um espaço qualquer, onde aparentemente nada de excepcional aconteceu. Através de um recorte pode haver diversas maneiras em potencial para descobrir questões macro. Penso que hoje em dia a maioria dos profissionais de nossa área busca perceber as relações entre macro e micro. Você faz um recorte, o recorte micro ajuda na quantidade de fontes que podem ser levantadas, para assim ter um maior subsídio para observar as trajetórias e relações, por exemplo, que seria inviável num espaço macro, para um pesquisador solitário. Só que, em contrapartida, é do conhecimento sobre o macro que tiramos nossas perguntas, e que podem então ser respondidas a partir do micro. Então, para mim, eles caminham juntos, é o chamado “jogo das escalas” que melhoram nossas análises. Existem as exceções? Existem, mas pelo que se tem demonstrado, esses micros estão em sintonia com esse todo. Por sua vez, o todo é um mosaico de diferentes micros, não necessariamente diferentes, contraditórios, e assim por diante…

Confira na próxima semana a terceira e última parte da entrevista!

1 Referência ao texto de Carlo Ginzburg e Carlo Poni. GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo. “O nome e o como”. In: ________. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil/DIFEL, 1991 p. 169-178.

2 LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Entrevista com Arlene Guimarães Foletto – parte I de III

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Arlene Guimarães Foletto é graduada em história pelo centro Universitário Franciscano (1999), mestre (2003) e doutora (2012) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora no Colégio de Aplicação da UFRGS e pós-doutoranda em História na mesma Universidade.

Arlene, você poderia falar um pouco sobre a temática de sua dissertação?

Primeiro gostaria de agradecer a lembrança, a oportunidade de estar aqui falando com vocês… Me senti lisonjeada com o convite, não consigo pensar em outra palavra para definir… Bom, posso começar como eu cheguei na dissertação?

Claro.

Eu me formei lá em Santa Maria, onde cursei a licenciatura em história, a pesquisa estava dando seus primeiros passos, digamos assim. Há pouco tempo tinha começado um trabalho de resgate da Quarta Colônia, através da metodologia de história oral, esse laboratório começou a ganhar corpo, mas era uma questão que eu não me envolvia tanto. Participei de dois projetos de pesquisa ao longo da graduação, com minha primeira orientadora, Elizabeth Weber Medeiros, que trabalhava com América. Quando terminei a graduação, fiz um projeto de especialização para a UFSM com a temática do integralismo e acabou que… eu cheguei um dia depois para fazer a seleção na especialização, perdi a prova e acabei não fazendo. De certa forma isto foi positivo, pois a temática não me envolvia a ponto de me manter nela, hoje tenho certeza disto! Aí, nos anos 2000, passei por um grande período de dúvida com o que eu iria trabalhar. Um certo dia estava em num evento, escutei dois professores palestrando: que era a Susana [Bleil de Souza] da UFRGS, uma sobre fronteira e o Farinatti [Luís Augusto Eibling] sobre sua pesquisa em História Agrária. Nesse momento, eu pensei: “ah, história agrária em Itaqui seria legal!”. Fui conversar com o Farinatti, que tinha sido meu professor na graduação, depois da palestra, ele me indicou o trabalho do professor Paulo Afonso Zarth para dar uma olhada. Zarth já tinha mapeado alguns espaços do Rio Grande do Sul, mas não tinha entrado em Itaqui. Naquela ocasião tive a certeza: “é isso que vou fazer”. Comecei a me apropriar sobre o assunto, vim aqui no Arquivo, inclusive foi a primeira vez que estive no Arquivo Público, conferir se tinha material para efetuar tal pesquisa para o espaço que pretendia. Montei o projeto de mestrado, fiz seleção na PUC e na UFRGS, passei nos dois e acabei ficando na UFRGS para trabalhar com a professora Helen Osório, que era quem trabalhava com a temática. Foi neste período que começou a minha relação com o Arquivo, que dura até hoje. Parando para pensar, eu me fiz pesquisadora aqui no Arquivo Público. Eu consultei outros acervos, estive em Itaqui, pesquisei no Arquivo Histórico [do Rio Grande do Sul] também, mas a maior parte dos dados que trabalhei ao longo desses anos saiu daqui… Não tenho dúvida que o que me fez pesquisadora foi o Arquivo Público, foram as fontes daqui que possibilitaram pensar e repensar meus recortes, minhas opções… Então, eu tenho um carinho muito grande pelo acervo, pelo Arquivo e pelas pessoas que aqui trabalham. Na época da dissertação eu tive contato com os Registros Paroquiais de Terra para a Paróquia de São Patrício de Itaqui. Itaqui não era o que eu pensava, as fontes também ressignificaram o espaço para mim! A localidade que compreendia a Paróquia de Itaqui era muito maior do que o município que eu conheci. Através de tais registros, que são um pouco diferentes dos demais, bem completos, o recorte espacial ganhou outra dimensão. Os declarantes, o próprio pároco, enfim, da forma que eles produziram a fonte, os registros que para nós hoje são fonte, permitiram com que eu conseguisse explorar tal fonte, a ponto de ser uma das bases quantitativas que até hoje utilizo para diversas análises. Como eu já disse, o espaço da paróquia se transformou, não era o que eu imaginava… Itaqui chegava quase ao centro do estado, encostado na Serra Geral, na região que hoje seria Jaguari, mais ou menos. Então perpassava Itaqui, Santiago, São Francisco, pegando um pedacinho de São Vicente e Jaguari. E foi este espaço que eu concentro meus estudos desde a época do mestrado. Num primeiro momento, a partir da metodologia de História Agrária, foi possível perceber uma diferença de paisagem agrária bem significativa, que ia tanto da presença de terras de campo, quanto de terras de mato. E as diferentes formas e os ritmos de apropriação desse espaço, como os indivíduos foram ocupando e transformando a paisagem geográfica em uma paisagem agrária. Tais estratégias estavam ligadas tanto aos seus interesses quanto a sua capacidade em transformar o meio, ligado também a própria diferença morfológica do espaço que compôs a paróquia.

2020.01.08 - Arlene

Você pode falar, também, um pouco sobre a temática da tese?

Entre a dissertação e a tese tive intervalo de tempo considerável, isso de certa forma contribuiu para refletir como gostaria de continuar os estudos. Durante a própria dissertação, além dos registros paroquiais, também trabalhei com os inventários post-mortem, apesar de ter feito o levantamento por amostragem de cinco em cinco anos, acabei por olhar todos os outros que não entraram na amostra. Isto permitiu ter uma noção melhor tanto da estrutura quanto dos indivíduos que viveram naquele espaço, na segunda metade do XIX, período onde sempre concentrei o meu trabalho. O que eu percebi, digamos assim, durante a dissertação, foi que a diferença da paisagem, os ritmos de apropriação, a própria configuração produtiva era muito mais complexa do que se havia descrito para o Rio Grande do Sul. Não só o meu trabalho, mas tantos outros estudos em História Agrária ajudaram neste processo, transformando a visão dual que imperava na historiografia. Hoje, sabemos um pouco mais sobre a antiga Província de São Pedro. Nela não haviam apenas grandes unidades produtivas nas mãos de poucos estancieiros com seus trabalhadores livres. Acabamos por demostrar uma diversidade social e produtiva muito maior, mais complexa: composta de médios, pequenos produtores, um grupo de trabalhadores livres, às vezes pequenos possuidores de terras, outras vezes agregados, outros sendo arrendatários, em alguns momentos eram trabalhadores sazonais, eram livres e na base desta hierarquia constatou-se a presença significativa dos trabalhadores cativos, inclusive na própria pecuária. E no que tange aos estudos da escravidão, para além do campo da História Agrária, temos uma gama ainda maior de excelentes trabalhos, que, sabemos, tiveram seu suporte nas fontes aqui do Arquivo. Em contrapartida, também não se pode negar que esses trabalhos, não só o meu, mas os dos colegas também, demonstram que existe uma concentração de terra e de rebanho significativa. E que esta concentração acompanha todo o processo de apropriação pelos luso-brasileiros no caso específico da terra. Tal fenômeno se intensifica na segunda metade do XIX, ligada tanto ao processo de cercamento dos campos, que transforma a terra em principal mercadoria quanto a própria mercantilização que emerge do processo sucessório, por exemplo. Então era uma realidade muito mais complexa do que se pensava, como mencionei anteriormente, que já vem sendo estudada, mas que ainda tem um potencial enorme que comporta diversos recortes: temáticos, metodológicos… Nesse sentido o potencial das fontes do Arquivo Público não tem limites! Podemos cruzar diversas fontes. Um exemplo: os Registros Paroquiais de Terras já tinham me mostrado um pouco da questão. Ao acessar os Registros Notariais, acabaram por confirmar a hipótese, nós tínhamos um processo de mercantilização da terra, que ao longo do XIX e na medida em que nessa segunda metade do XIX a terra foi tomando um valor ainda maior. Essa mercantilização foi crescendo e é possível perceber que, inclusive, aqueles que possuíam um rebanho significativo foram diminuindo o número de cabeças e passaram a investir em ampliar suas terras. Então o processo de concentração de terras se mantinha ao longo do tempo, ao longo das gerações. Para perceber tal processo, vários corpus do Arquivo podem serem usados: registro paroquial de terras, inventários, processos de medição, registros notariais (de compra e venda, hipotecas e arrendamentos). Isto tudo está aqui, preservado para vários espaços, e estão esperando para serem explorados! A partir do conhecimento de tal estrutura, optei por continuar meus estudos trabalhando com os indivíduos que concentravam terras e rebanhos. Contudo, entre o mestrado e doutorado eu dei um tempo significativo, foram quatro anos, para então fazer seleção do doutorado. Neste ínterim eu tive contato com pesquisas do grupo do Antigo Regime, a partir deles percebi que para eu entender melhor tal processo teria que passar a levar em consideração a perspectiva da família, a questão sucessória, os ciclos de vida, tanto o ciclo de vida do indivíduo, quanto o ciclo de vida familiar. Assim, quando eu montei o projeto do doutorado, a ideia inicial era fazer um trabalho prosopográfico em cima das famílias que concentravam terras e gado e também patentes militares na região. Porque não podemos negar que o Rio Grande do Sul também foi marcado por uma distribuição da terra a partir da ocupação militar. Lógico, cabe ressaltar mais uma vez que não foi só esta forma de acesso a terra. Outras formas de apropriação contribuíram para a construção de uma paisagem agrária diversificada, mas a relação patente militar/terra esteve presente neste processo. Então o critério que utilizei para recortar eram indivíduos e as famílias que concentravam terras, gado e patente militar. Quando eu fiz a seleção na UFRGS e UFRJ, passei nas duas, mas não tive bolsa mais uma vez. Assim como no mestrado, fiz o doutorado trabalhando, e permaneci aqui no sul. Então fazer um estudo prosopográfico trabalhando se tornou algo inviável. Eu teria, mais ou menos, umas dez famílias para pesquisar, na época, então, optei por trabalhar com três delas. E mais uma vez as fontes do Arquivo Público estiveram presente em minhas escolhas. Como selecionei elas? Por sua representatividade nas mais diferentes fontes. Este foi o critério para escolher essas famílias que trabalhei no doutorado.

Leia na próxima semana a continuidade da entrevista com a historiadora Arlene Guimarães Foletto.

Entrevista com Jovani Scherer – Parte III #NovembroNegro

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Na semana anterior, publicamos o trecho da entrevista no qual Jovani Scherer discutiu o projeto Documentos da Escravidão.

E como tu levaste essa experiência para o seu mestrado?

Eu diria que, de certa maneira, eu comecei as questões do meu mestrado durante o projeto. Entre levar uma leitura para os teus colegas, eram meus colegas, propor questões e tentar ler aqueles documentos, são todas questões que depois foram parar no meu trabalho, de certa maneira. Assim como o meu projeto do Arquivo era meio megalomaníaco, o meu projeto inicial de mestrado também era altamente megalomaníaco. E o Paulo Moreira, que foi muito legal, eu fui para a UNISINOS para ter a experiência de fazer o mestrado com ele. Eu me lembro de apresentar o meu projeto, aquele logo após o projeto, aquelas ideias, era gigantesco, devia ter uns sete capítulos ou oito, era enorme. Era uma discussão tudo, porque tinha um acumulo de documentos, uma coisa absurda. Nesse dois anos no que eu ficava gerenciando e vendo de documentos, eu estava “ah, vou resolver a questão da família escrava, a questão dos africanos livres, das redes entre esses caras…”, eu tinha uma clareza daquele monte de documento, da Guerra do Paraguai, da Guerra dos Farrapos, tinha coisa para tudo que era lado. Então, isso foi um pouco, assim, legal para o meu mestrado, mas foi um pouco demais, eu tinha que aprender a selecionar, aprender a entender o que as fontes diziam, ver se eu conseguia responder algumas daquelas questões que a historiografia já levantava, tinha lido o que estava sendo discutido em outros lugares, foi um processo um pouco dolorido. O tempo que eu tinha para fazer o meu mestrado era menor do que a minha vontade. Eu tinha vontade de responder várias questões. Aí entra outras questões, questão de escrever, da tua capacidade de escrever, eu entendo que o mestrado, para mim, foi uma experiência interessante nesse sentido, porque ali eu desenvolvi a minha escrita. Eu tinha muita dificuldade de escrita que vinha desde a graduação que, tem a ver com a minha formação enquanto estudante, tem pessoas que tem uma facilidade maior, outras tem sua própria formação. Eu não, tanto que eu escrevia mal mesmo, comecei a escrever um pouquinho melhor no mestrado, pelo exercício. Então, o projeto foi fundamental. A gente começou por Rio Grande, eu acabei indo pesquisar Rio Grande por isso, porque eu via a importância que a cidade tinha e eu achava que era uma cidade que não tinha tanta atenção historiográfica. Então foi um trabalho que desenvolvi na minha pesquisa de graduação. Eu “bá, o que vou escolher?”, eu estava aqui, começamos por Rio Grande, comecei a ler sobre Rio Grande e pensei “pô, Rio Grande tem pouquíssima coisa publicada, de um estudo mais aprofundado! 2019.11.06 JovaniVou começar por Rio Grande”, e adorei pesquisar Rio Grande. Porque Rio Grande tinha uma riqueza absurda em termos de fontes, mas que precisava de uma leitura mais aprofundada, uma discussão com uma historiografia mais contemporânea, no caso ali no meio dos anos 2000, mas eu tinha toda uma literatura de história da década de 1990, que a gente não via em quase nenhum lugar. Não sei se te respondi essa questão, me perdi (risos).

Eu queria te perguntar por último, assim concluindo a entrevista, é: como é que tu conseguiu encontrar essa comunidade africana, que tu fala na tua dissertação, através das cartas de alforria?
Na minha dissertação, aí indo para o meu trabalho propriamente dito, ao mesmo tempo em que eu estava lendo as alforrias, e essas alforrias eu já tinha elas lidas desde a graduação, então quando entrei no mestrado eu já tinha um banco de dados das alforrias prontos. O que eu fiz foi pesquisar outras alforrias. Uma das coisas que eu aprendi no Arquivo como pessoa que ficava auxiliando os outros a pesquisarem, e tive contato com alguns pesquisadores bem interessantes – como eu te falei que são daqui do Rio Grande do Sul, mas de outros lugares também –, então, uma das coisas que eu aprendi foi que os documentos não seguem necessariamente uma lógica perfeita da sua origem de produção, eles seguem outras lógicas. Então eu fui, durante o mestrado, procurar outras fontes que tinham alforria. E durante o mestrado, lembro até de ter conversado contigo uma vez, eu vim aqui fazer uma pesquisa super regrado, eu olhava muitos inventários durante o mestrado. O volume de inventários que eu lia, durante o mestrado, foi um volume realmente grande. Então, o que eu estava procurando no meu mestrado era fazer uma comparação entre a população que se alforriava, que eu já sabia que era um número de africanos muito grande, mas eu nunca saberia qual a proporção deles se eu não soubesse qual era a proporção deles na população escrava, então, o que eu mais queria conseguir realizar no mestrado quando eu estava pesquisando era isso. Era como saber se esse dado não era um dado solto. Eu comecei a ler a historiografia de vários lugares, tese, dissertações, livros, as vezes essa análise ela vem solta comparando com outros lugares sem ter a noção a proporção daquela população. Então tu fala “tem 50% de africanos”, mas quantos africanos existiam na população escrava? Tinha 50 [%] se alforriando? E quantos estavam na população? Eu não posso dizer que os africanos se localidade, com o dado começo a comparar com outras realidades. Então a minha ideia era essa. Encontro então aquela população africana nas alforrias, na alforriavam mais ou as mulheres se alforriavam mais se eu não tiver a proporção daquela documentação quantitativa. E aí começa a me surgir essa questão dos iorubás, já sabia que os minas que eram importantes, os nagôs, já tinha lido o trabalho do Paulo, comecei a procurar outras leituras desse tipo. Mas eu queria saber qual a proporção deles na população escrava de Rio Grande. E também não era uma proporção nada pequena, era uma proporção grande. Mas um número de alforrias muito maior. Então, eu em campo para… Porque eu entendi que seria, daí, a possibilidade maior é procurar as recorrências dos nomes, procurar as pessoas. Então eu comecei a tentar encontrar nas fontes, e tu sabe que isso dá trabalho, aquelas pessoas que a gente pudesse mapear a trajetória para compreender essas ligações. Daí que apareceu o Jorge, o Jorge Mina Nagô, o Jorge Cipriano Rodrigues Barcelos, ele aparecia dando a alforria, aparecia em processo criminal, como um proprietário de um africano liberto, ele aparecia em várias situações. Então fui procurando esses indivíduos que pudessem mapear e me dar mais uma clareza daquele tecido social. Como é que essas pessoas conseguiam alforria, né? Eu ainda tenho algumas dúvidas. Eu teria um problema para um doutorado. Teria algumas ideias que eu deixei prontinhas, era só continuar, eram muito interessantes. E eu ainda tenho vontade, te confesso que eu tenho uma certa vontade de continuar atrás desses indivíduos. Procurar essas fontes que são quase uma pesquisa artesanal, eu fiz uma pesquisa grande e quantitativa. Então a comunidade foi se desenhando através das fontes quantitativas. Mas não tem como tu encontrares as ligações entre os indivíduos se não for nas fontes que te dê uma questão das histórias de vida, essas ligações parentais simbólicas, essas ideias que vão surgindo não só em processos criminais, mas, às vezes, numa leitura pouco mais cuidadosa de um inventário. A questão nem é tanto a fonte ser diferente, mas um olhar mais cuidadoso. Tu voltares bem naquelas fontes e procurar aqueles indivíduos, procurar de uma maneira assim, uma agulha no palheiro. Onde é que eu vou encontrar? E quando tu não encontrar o indivíduo que tu buscava, o Jorge [por exemplo], procurar pessoas que tenham uma experiência semelhante que te possa criar um panorama possível, uma verossimilhança daquela situação, uma coisa que é possível. Eu penso que a minha busca pela comunidade africana de Rio Grande passou por isso. Teria outras coisas para prosseguir o trabalho, mas ele tem que acabar, o mestrado ele tem que acabar.

A gente interrompe, não termina.
Ele tem que acabar. Esse é um processo dolorido e acho que, nós que defendemos o mestrado em dois anos passam. As pessoas que entram no mestrado que tem um tema mais desenvolvido, seja por ser bolsista, seja por consequência da vida como foi a minha, é um tema que não te permite erros e a gente erra. A gente erra em outras situações, só que a maneira que esses programas são orientados, essa produção acelerada é uma forçação de uma posição para tu defender que você acaba tomando caminhos. Acho que até encontrei algumas soluções interessantes, mas teria que ter desdobramentos para ficar um pouco mais tranquilo, para poder defender com um pouco mais de embasamento. Não só o material das fontes, mas também teórico.

Eu acho que essa possibilidade de uma continuidade do teu trabalho quem viria a ganhar seria a historiografia, com certeza.
É. Gostaria muito de continuar, mas eu não imagino. Até voltei algumas vezes aqui. Tenho vontade, tenho dois temas. Eu vim aqui no verão, Não tenho tempo para nada, tenho dois filhos, trabalho em duas escolas e gosto de pensar na ideia que ainda sou um capoeirista, apesar de treinar muito pouco. Eu vim aqui procurar o Príncipe Custódio, até falei para o Paulo “Paulo, estou atrás do Príncipe Custódio, não é possível que ninguém achou!” e ele falou “Ah, todo mundo já procurou…”, “Eu tinha umas pistas da onde é que ele estaria, queria descobrir onde é que ele andou entre Rio Grande e Porto Alegre, eu vou achar onde é que esse cara está, né!”. Como é só uma vontade, eu sabia que era por sorte. Eu sei que isso demandaria muito tempo, que é o que me falta agora. Então, eu tenho vontade de fazer um trabalho, mas ele tem que ser um trabalho que me traga muito prazer e que eu acredite que eu possa fazer. Entende? Eu penso assim. E o outro, que eu acredito que um dia, talvez, eu faça, que eu gostaria de escrever sobre a historia da capoeira nas épocas mais antigas ou de algumas outras questões mais culturais envolvidas com comunidades negras do século XIX. Eu acho que é possível encontrar, mas também é um trabalho artesanal que requereria muito tempo de pesquisa em arquivos, com tempo e muita sorte, mas é possível.

São duas coisas que andam juntas, né? Quando a gente tem sorte quando vai atrás.
É, exatamente.

Então tá, Jovani. Muito obrigado!

 

Notícias relacionadas:

Entrevista com Jovani Scherer – Parte I #NovembroNegro

Entrevista com Jovani Scherer – Parte II #NovembroNegro

Entrevista com Jovani Scherer – Parte II #NovembroNegro

Deixe um comentário

2019.11.20 Jovani

No trecho da entrevista publicada na semana anterior, o historiador Jovani Scherer explicava a origem e sua participação no projeto Documentos da Escravidão.

A gente lia um monte de coisas da documentação judiciária, comecei a perceber então de onde que os historiadores tiravam as informações, as ideias deles e comecei a pensar. Então surgiu esse momento do Daniel Saraiva, que era o nosso colega aqui responsável pela sala de pesquisa, me indicar para a diretora do Arquivo que foi uma pessoa muito importante para o projeto, a Rosani Feron, Rosani Gorete Feron… foi bem importante. Então quando ela me ofereceu, ela esperava que eu fosse me atirar na ideia de ser responsável pela sala de pesquisa, e eu achei que só seria interessante se tivesse uma abertura para um projeto, que eu nem sabia exatamente o que que era, alguma coisa nesse sentido, eu pensava nessa coisa do Moacir Flores e tal. Então eu fiz um projeto chamado “Escravos no Rio Grande do Sul” que sugeria que a gente fizesse então uma seleção de informações para criar instrumentos sobre quase todos os documentos que tinham no Arquivo, todos os acervos. Tinha carta de alforria, mas não era só carta de alforria, a carta de alforria viria depois que eu fiz o projeto, foi ajuntado porque daí a gente descobriu que o Paulo estava fazendo já o de Porto Alegre. Eu sabia que o Paulo estava pesquisando Porto Alegre, mas o Arquivo não tinha ciência de que existia um projeto vinculado a este e eles estavam num estágio avançado. Então a gente fez um projeto, um projeto assim… como a maioria das coisas que eu faço, meio megalomaníaco, que incluía todos os acervos, pesquisar os acervos todos, criar uma série de instrumentos sobre inventários, processos criminais e as suas variações, sumário crime, execução e outros documentos que eu já achava interessantes e que eu tinha certeza que teria horrores de coisas a respeito não só da escravidão, mas também dos livres e dos libertos. Já tinha começado a pesquisar. Visto que era coisa realmente grandiosa, se a gente organizasse algo assim teria uma grande serventia tanto para os pesquisadores, como do ponto de vista social. Haveria uma possibilidade de ter desdobramentos a respeito disso. Então eu apresentei um projeto para a Rosani e na mesma época surgiu um concurso de Ministério da Cultura da Espanha que financiava projetos Ibero-americanos e a gente conseguiu, a gente venceu lá, recebemos verba que na época era uns 20 mil euros ou 10 mil euros, não me lembro exatamente. Eu sei que o projeto começou com isso. Apresentei um projeto megalomaníaco para a Rosani, a Rosani deu uma adaptada, melhorou bastante, deu uma lapidada no meu projeto que tinha… esses projetos de universidade, cheio de página, cheio de citações, ela deixou de uma forma muito mais técnica, uma arquivista experiente. A Rosani, sensacional ela! E daí a gente ganhou, ganhamos essa verba aí e isso já deu uma outra, né… Porque imagina, né!? Pensa bem, né? Eu era o único estagiário de história, não era nem formado [risos]. Então deu uma dinâmica interessante, deu uma grana para a gente contratar estagiário, uma série de possibilidades para o projeto ir para frente. Então, nesse meio tempo, a Rosani descobriu, não sei se conversando com o Paulo ou com Frei Rovílio, eu sei que apareceu o projeto, a gente não sabia que estava acontecendo e que ele já estava em andamento. Daí se criou a ideia de fazer uma parceria. Eu achei ótimo porque eu tinha a minha experiência, que era uma experiência pequena, não estou nem comparando com a do Paulo, a minha é pequena comparada com a do Paulo, mas era uma experiência muito pequena. E de repente a gente tinha a possibilidade trazer para nós, eu não sabia exatamente como, uma experiência do Paulo que era um cara que trabalhava na época ainda no Arquivo Histórico e recém tinha defendido a tese dele, que recém tinha sido publicada. Então a gente começou o projeto pelas cartas de alforria em razão disso. A editora nos deu altos suportes, nos deu um suporte em vários níveis, levaram computadores, a Tatiane que era funcionária e estava assim, bá… nos deu toda a metodologia, primeiro ela vinha e revisava comigo, aprendi um monte com ela naquele momento super importante. Então nos deram um alto suporte, para o Arquivo, para a gente começar o projeto em termos práticos. Logo em seguida, a gente fez essa divisão, eles estavam trabalhando com as cartas de alforria de Porto Alegre que é um monte de alforria, acho que só Porto Alegre deve ter dez mil alforrias, mais ou menos, e nós começamos pelas alforrias dos principais e mais antigos municípios do restante do interior do Estado, Rio Grande, Pelotas, Cruz Alta, enfim. Depois a gente criou um calendário para seguir essa pesquisa que, de repente, foi a forma… De repente, não! Foi o que eu acabei trabalhando foi no catálogo das alforrias, mas a ideia era que o projeto se estendesse. Era um projeto para toda vida [risos]. E se estendeu. Mas ele tinha uma dinâmica diferente quando eu estava aqui, eu acho. Eu tinha uma coisa e tenho quando tomo e gasto no trabalho de brigar pelas coisas que eu acredito, eu insisto quando acredito que seja uma coisa justa. Então, quando eu entrei aqui no Arquivo e como não tinha um historiador concursado, não tinha área bem estabelecida, então, quando chegaram esses estagiários, os primeiros dez, a gente fazia todo um estudo. Eu não botava eles para ir para os livros, a gente fazia um estudo, lia livros de historiografia, fazia todo um seminário, até porque quando ele olhasse para um livro, ele conseguia entender o que que ele estava vendo. E mesmo porque o estagiário não está aqui como um trabalhador de remuneração mais barata, não, tem que ter uma contrapartida, ele vem aqui para aprender! E a minha ideia era de mapear essa documentação e fazer uma análise prévia, mais ou menos como saiu o trabalho da EST, que houvesse uma investigação em torno daquela documentação. Não era o meu projeto de doutorado, meu projeto de pesquisa, nada a ver com isso, mas no sentido de que o Arquivo enquanto instituição e, eu através da função que exercia na época, meio que me enfiando nessa função, fazer uma análise prévia, estabelecer algumas perguntas gerais, que a gente começasse a dialogar mais com a Academia e trabalhar com essas questões. A minha ideia era essa. Mas aí, o projeto teve alguns problemas, e isso eu não me lembro porque eu não participei, se eu tivesse participado, porque eu não tinha essa participação na ligação. Não sei exatamente o que houve entre a EST e, não sei se a direção do Arquivo, o pessoal lá, que não conseguimos nos estabelecer no final, antes das cartas de liberdade serem aprontadas. Ele [o projeto] acabou nem saindo pela EST, saindo pela CORAG. Não sei se já tinham se estabelecido antes, eu sei que teve algum problema ali no final, que a coisa não funcionou. O que também não me deixou muito contente na época, eu não gostei muito. E também acho que por isso eu não… Quando eu saí para o mestrado da Unisinos, daí fazendo o meu trabalho que envolvia as cartas de alforria dentre outras coisas, das experiências de liberdade lá em Rio Grande, eu me ofereci para continuar dando uma certa orientada sem nenhum custo para o Arquivo. Eu acho que poderia ter contribuído principalmente nessa ideia de formar e a gente ter um grupo que trabalhasse em torno dessa documentação, que pensasse essa documentação, porque a gente não quer ser um contador de documentos para publicar. Então aconteceu alguma coisa ali e eu também não consegui voltar mais, entendi que era outro viés que ia seguir e fico feliz que tenha seguido, foram anos publicando coisas. Mas, eu acho que poderia ter tido algumas outras maneiras de seguir esse trabalho, eu gostaria que tivesse um tempo maior. Eu via se estabelecendo algumas parcerias inclusive com as universidades, a gente tinha muita gente para ouvir. Não sei exatamente como é que se desenvolveu depois, mas imagino, pela maneira que estava se desenvolvendo naquela época, acho que o caminho seria esse, de ter uma escuta de profissionais mais experimentados, a própria Regina Xavier, entre outras pessoas. Que era, de certa maneira, o caminho que a gente estava tentado consolidar dentro do Arquivo, enquanto uma instituição que também começasse a permitir uma pesquisa, fornecer instrumentos e fomentasse e dialogasse. A gente criou a mostra de pesquisas do Arquivo junto com a Márcia, tinha outro evento que era o “Arquivo Público discute” que a gente fazia discussões de temáticas do momento. Porque o Arquivo tem essa possibilidade, guarda os documentos, mas ele também é um espaço. Um espaço incrível!

Vocês tinham noção do número de documentos, do volume documental que seria encontrado ou foi uma surpresa?

Assim, o número exato não. Mas, eu tinha uma ideia de que seria bastante, que era muita coisa. Não posso dizer que eu não tinha noção. Porque isso que fez eu gerar. Claro que algumas coisas nos surpreenderam. Eu não tenho uma ideia do projeto inteiro agora, porque, enfim, a vida pulsa lá fora, eu também estou enterrado de cabeça nas minhas questões como educador e as coisas que eu desenvolvi aqui no Arquivo continuam, mas eu não sei o volume dos outros acervos de quando eu estava aqui. Mas as cartas, não diria que me surpreendeu o volume final de números de alforriados, mas sabia que era muito grande. Porque pegava os livros e via, livros inteiros de Pelotas e cada alforria com 70… 80… 90, as vezes, pessoas no final da escravidão.

Leia a parte final da entrevista com Jovani Scherer na próxima semana!

 

Entrevista com Jovani Scherer – Parte I #NovembroNegro

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Jovani Scherer é licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005) e mestre em História pela Unisinos  (2008). Sua dissertação pode ser acessada clicando aqui. Trabalha na Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriel Obino e no Colégio Anchieta, em Porto Alegre.  Foi idealizador e coordenador do projeto “Documentos da Escravidão” entre 2004 e 2006.

2019.11.06 Jovani

Jovani, eu queria te pedir para falar um pouco sobre a tua trajetória profissional e o lugar do Arquivo Público nessa trajetória.

Bom, vim para o Arquivo Público quando eu estava no meio da faculdade, né? Então, o Arquivo Público de certa maneira foi uma formação complementar. E modificou bastante a minha compreensão da pesquisa histórica. Porque eu, como estudante, não conhecia o Arquivo e, às vezes, eu ouvia falar do Arquivo Histórico. Quando entrei aqui, eu estava cursando as cadeiras de pesquisa, não sei se era a pesquisa um ou dois, mas era nesse momento de começar a participar da pesquisa. Então, fez uma grande diferença para mim, porque, na verdade, eu saí daqui quando eu me graduei. Aí entrei em contato com uma série de historiadores que eram professores da UFRGS, mas que eu não estava tendo aula porque alguns estavam, por exemplo, fazendo doutorado, pós-doutorado, outros de outros lugares como o Paulo Moreira, o Farinatti, até professores da UFRGS que a gente tem um contato diferente como professores como a Helen Osório. Então, comecei a ter contato com esses professores e com a pesquisa, né? E o interessante, como estudante de história, tu lês assuntos que são tratados, por exemplo, principalmente, sobre a historiografia da escravidão, quando eu estava fazendo Brasil I ou Brasil II, não me lembro agora, e eu chegava aqui, folheava os documentos e via que tinha documentos que facilmente contradiziam o que a historiografia que eu estava estudando. Não era uma historiografia antiga, era uma historiografia atual. Então fez uma diferença grande, eu percebi que tinha um campo grande a ser estudado, fez uma grande diferença na minha formação. Então fiz história, me formei da UFRGS em licenciatura e apesar da UFRGS, ela tem uma… na época era um curso diferente do que é hoje, licenciatura e bacharelado eram bem próximos, uma diferença muito tênue. Apesar de eu ter uma vontade muito grande de ser professor que eu exerço hoje como profissão, eu tive uma marca muito forte de pesquisador, que tem um viés da UFRGS mesmo na licenciatura, mas quando eu entrei ela me mudou profundamente. E daí, depois disso, eu fiz o mestrado na Unisinos, fiz o projeto do que agora se chama “Documentos da Escravidão”, na época se chamava “Escravos no Rio Grande do Sul” que era um nome provisório, acho que “Documentos da Escravidão” é muito melhor. E daí, depois da Unisinos, comecei a lecionar, então sou professor da educação básica, apesar de ter dado alguns cursos na Unisinos na pós-graduação, uma ou outra coisa, mas, hoje, eu sou professor na educação básica. Eu diria assim, em termos gerais, o Arquivo foi fundamental para mim. Até hoje tenho saudades e quando eu tenho tempo eu dou uma passada aqui no Arquivo, continuo me sentindo… acho que eu sou. Às vezes ficam me perguntando, quando encontro colegas mais historiadores, eu não me sinto um historiador, mas eu acho que faz parte de mim a ideia de ser historiador e eu tenho uma inclinação grande à pesquisa e tal. Volta e meia tem um assunto que eu estou procurando… Mas, atualmente me considero só um professor de história, bem professor mesmo, mas que tem um flerte forte para a ideia da pesquisa e eu levo isso para a minha sala de aula, atualmente.

De que maneira, como é que a tua experiência de pesquisador repercute no teu papel como educador?

Acho que, inicialmente, na produção do conhecimento. Acho inicialmente isso. Acho que é fundamental tu levares para a sala de aula os instrumentos do historiador e a ideia de que a história que tu estás estudando não é completamente pronta e que há dúvidas a respeito da história. Acho que é muito interessante tu levares um documento para um aluno e pedir para ele analisar. E não dar uma análise pronta. Então, logo que eu saí daqui, inclusive quando eu estava aqui, fiz várias experiências com cartas de alforria, obviamente, que era nossa parte inicial do projeto, mas, inclusive com outras fontes. Eu continuo com essa visão assim, que eu acho que reflete essa minha visão de historiador na minha postura como professor, como educador, de trabalhar várias fontes com os alunos, aprender a ler a realidade de várias formas diferentes. Quando a gente vai para a sala de aula, a gente amplia ainda mais, porque uma pesquisa tem que ser reduzida, tu podes analisar. Estudar tal época com tais e tais fontes, durante esse tempo, porque tu tens um tempo para concluir a tua pesquisa. Agora, na sala de aula, tu amplias, teus assuntos são mais generalizados. Mas, a experiência da pesquisa permite que tu faças alguns mergulhos, assim, “agora a gente vai olhar…”, por exemplo, assim, a gente vai fazer uma biografia, que reflete bem esses últimos pontos da micro-história, de certa maneira, pegar percursos, a gente faz biografias na sala de aula. E isso tu vês que os alunos se identificam muito, porque daí tu não estás falando…, que eu acho que é uma coisa forte da minha formação na UFRGS e como historiador, tu falares dos indivíduos com um nome, com escolhas, com dificuldades, vendo que ele tem que se posicionar à frente de uma determinada situação e ele não é um herói, ela vai decidir, tem que sobreviver, vai decidir naquele momento o que fazer. E, muitas vezes, a gente não sabe o que aconteceu com ele depois, então, eles [os alunos] perguntam: “O que aconteceu, sor? E depois, o que tu sabe?”, “Eu não sei, a gente não sabe, podemos supor, a gente pode dialogar aqui um pouco o que pode ter acontecido e talvez ninguém saiba…”, isso é interessante. Na produção do conhecimento do aluno, ele se dá conta, então, que naquele momento ele também está produzindo esse protagonismo, “Ah, eu também posso!”, “A pessoa que produz o conhecimento não é um cara que fica enjaulado lá, tá aqui do meu lado e de repente pode ser até eu”.

Por falar, então, na produção do conhecimento, para quem não conhece. Tu podias falar um pouco sobre em que consistiu e qual foi a dimensão do projeto “Documentos da Escravidão”?

Eu estava tentando, desde que tu me ligaste, tentando me lembrar exatamente. Tem algumas coisas que eu não me lembro, mas eu vou tentar reproduzir fielmente tudo aquilo conforme me lembro. Não faz tanto tempo, mas não é tão recente assim, já se foram aí uns belos 15 anos mais ou menos, um pouco mais um pouco menos que o projeto começou. Primeiro que eu acho que tem a ver muito com a minha dinâmica como atendente da sala de pesquisa. Eu entrei como estagiário e fiz uma série de funções dentro do Arquivo, eu trabalhei um pouco com a Márcia Rocha que é historiadora, ela primeiro, mas muito pouco, depois fui direcionado para atender na sala de pesquisa e na sala de pesquisa foi muito legal. E nesse atendimento na sala de pesquisa, eu entrei em contato com uma documentação, não sei se existe aqui ainda, mas tu deve conhecer. Quanto tempo tu está aqui?

Um ano.

Um ano? Se não conhece, deve estar em algum lugar, uns blocos verdes, já ouviu falar? São os blocos verdes que estavam na sala de pesquisa disponível para os pesquisadores, o único instrumento que não era um catálogo de mais, assim, com datas. Era um instrumento de pesquisa organizado pelo Moacyr Flores, deve estar em algum lugar, era superinteressante. Tinha um tipo de um resumo dos processos criminais de várias épocas diferentes, catalogado com um impresso, aquela impressão antiga. Sabe aquela folha do computador que tem aqueles furos? Não sei qual é o nome dela, sabe? Um fichário que foi feito, se não me engano, pelo Moacir Flores. E aquilo me chamou a atenção, né? Porque a gente estava atendendo, de vez em quando dava um tempo e as vezes não dava, era uma correria, a pesquisa era mais concorrida do que é hoje, tinha pedidos bem volumosos, principalmente de genealogistas; mas quando dava um tempo a gente tentava pegar o documento, ler alguma coisa e esses maços que tinham, que é um instrumento feito pelo professor Moacyr Flores, eram bem interessantes, porque daí tu podia verificar de forma mais rápida e mais ampla já no resumo. Isso me chamou a atenção. Depois, no atendimento, principalmente ali do Paulo [Moreira], do Fábio Kuhn, o Fábio Kuhn foi um cara que me marcou muito aqui pesquisando, eu não tive aula com ele, mas comecei a ler sobre história do Rio Grande do Sul, que eu via os documentos e queria entender. E o que eu estava lendo na cadeira de História do Rio Grande do Sul, fui atrás de algumas coisas do Fábio Kuhn, de repente aparecia aqui, as conversas com o Fábio Kuhn foram muito legais. Então, eu comecei a pensar que faltava alguma coisa para o Arquivo, senti que era uma coisa assim… Como é que eu posso dizer? Era uma riqueza quase que escondida, eu via os pesquisadores catando “pepitas” e a gente com uma possibilidade tão grande de fazer alguma sistematização, oferecer outros instrumentos e também aproveitar essa galera que está saindo da universidade, que está no meio da universidade e tem que trabalhar, fazer alguma coisa e, às vezes, não tem contato com a instituição que tem essa riqueza que é o Arquivo Público. Então, de repente, comecei a me dar conta do lugar onde eu estava em termos históricos.

Leia na próxima semana a continuação da entrevista com Jovani Scherer!

Entrevista com Maria do Carmo Aguilar – parte II

Deixe um comentário

logo apers entrevista

No trecho da entrevista publicado na semana anterior, a historiadora Maria do Carmo Aguilar explicava a forma como relaciona fontes escritas e orais em sua pesquisa.

E outra questão, assim, te provocando um pouco. Tu não acha que existe o risco para nós, e eu me coloco também como historiador do pós abolição em áreas rurais, de a gente se centrar nas fontes orais no pós-abolição ao contrário de fazer um cruzamento com as fontes escritas como a gente faz para o século XIX?

Na dissertação eu fiquei centrada nas fontes orais, mas se a gente pegar a minha dissertação e a minha tese e unir as duas aí a gente vai ver o cruzamento. Porque a minha dissertação começa em 1930/40 e a tese ela vai de 1870 a 1900. E aí na tese eu voltei para o final do XIX justamente para poder analisar esse contexto dessas relações de trabalho que eles, os entrevistados, estavam falando. Então eu fiz essa partição, na dissertação eu usei história oral e na tese eu fiquei nas fontes escritas, mas na tese eu também puxo, eu vou puxando as entrevistas; tem as entrevistas na tese também, eu vou trazendo argumentos da minha dissertação para a tese, então, eu uso ali na tese também história oral e as fontes escritas, faço meio que esse cruzamento. Mas num capítulo, num capítulo que eu estou discutindo o trabalho análogo ao escravizado e tal, aí eu vou puxando essas entrevistas. Mas se juntar, porque eu vejo a minha dissertação e a minha tese como um grande conjunto. Porque o que me levou a pesquisar o meu problema na tese foram as provocações que os quilombolas fizeram na dissertação, então, eu vou pegando na mesma região; se eu for pegar os dois em conjunto é de 1870 a 1960, então eu tenho esse recorte temporal e ali tem fontes primárias, fontes orais, fontes escritas, tem uma gama de fontes. Mas é difícil fazer isso.

É um desafio?

É um desafio, é difícil. Tem a questão do tempo, o nosso tempo de pesquisa. No mestrado são dois anos, é pouco tempo para você aprofundar, para você fazer esses cruzamentos de fontes. É difícil, né? É difícil você conseguir fazer isso.

2019.10.09 Maria do Carmo Aguilar

E continuando na questão das fontes, dá para ver nos teus trabalhos que você é uma historiadora com fundamentação empírica muito grande. Então, queria te pedir para falar um pouco sobre o papel das fontes do Arquivo Público no teu trabalho.

Foram fundamentais, foram as fontes que jogaram luz nesse imediato pós abolição. Então eu pesquisei. O meu objetivo na tese era analisar as relações de trabalho estabelecidos entre libertos e empregadores nesse pós abolição, de ver algumas questões, a questão de inclusão e exclusão desse mercado de trabalho, como é que se deu esse processo, quais eras as expectativas de ex senhores, dos libertos em relação a esse mercado de trabalho, que mercado de trabalho era esse e o que é esse trabalho livre para ex senhores e para libertos. Então havia a possibilidade de trabalho autônomo na região que eu pesquisei, que foi Cruz Alta, eles ficaram nas propriedades. Qual era o grau de autonomia ficando ali na propriedade, onde conheceram o cativeiro? Como é que eles negociaram com esses ex-senhores os termos dessa nova relação? Então tinha uma série de perguntas e para eu responder eu fui paras fontes fazer esse cruzamento. Então, eu analisei uma série de fontes documentais, analisei os processos crimes, eu acho que para Cruz Alta tinha uns seiscentos e poucos processos, desses seiscentos e pouco eu achei uns cerca de cinquenta e poucos que mencionava negro, preto ou pardo, e desses cinquenta e poucos quase trinta mencionava a condição; era preto forro ou ex escravo de fulano de tal, era o preto liberto ex escravo de fulano de tal e aí era em torno de uns trinta, assim. Aí, nos processos crimes eu consegui ver ali a experiência, a trajetória desses sujeitos ali envolvidos naquela contenda. E nos processos crimes você vê as redes de sociabilidade, no que trabalhavam, a partir dos processos eu consegui. Eu tinha acesso à planta de Cruz Alta de 1880 e poucos, aí eu consegui mapear as residências deles ali, então eles estavam, alguns, próximo, perto uns dos outros, aí tem processos crimes sobre festas, bailes de fandangos na casa de libertos, porque tem vários libertos juntos e são moradores das proximidades ali. Então, a gente consegue pesquisar, fazer esse mapeamento essa trajetória e experiência que o processo crime me deu. Fui para os inventários para ver a questão da produção, a estrutura fundiária da região. Os inventários em Cruz Alta eu acho que era quatrocentos e poucos, aí já tem mais de mil documentos que eu pesquisei. E aí ali também tinha… eu consegui localizar alguns libertos trabalhando nessas propriedades, também pesquisei os livros de transmissão em notas que aí eu fui olhar os contratos de locação de serviços, os contratos estabelecidos entre os libertos e empregadores e também dei uma olhada nas cartas de alforria com clausulas de prestação se serviços. Então, eu acho que os processos, os documentos custodiados pelo Arquivo são fundamentais, sem eles… com eles eu consegui responder aos meus problemas de pesquisa e através deles, igual aos processos crimes, eu consegui problematizar os dados do censo. Você pega as profissões que aparem no censo, as profissões em Cruz Alta tem um alto número de assalariados, números que eu jamais encontrei nos processos crimes, então, eu consegui problematizar os dados do censo. A gente sabe que tem todo um problema na questão dos censos e que os censos eles vem a fixar no tempo, ali, aquele sujeito e nos processos crimes você vê o movimento e te permite fazer uma análise mais qualitativa. Então, no processo crime tem o liberto que vai dizer que a sua ocupação é lavrador, mas ele está construindo um muro. Então como é que ele aparece no censo, ele é um lavrador ou ele é um jornaleiro? Como é que isso aparece? Até a questão dos libertandos, não tem no censo os libertandos. Eles não são assalariados, estão trabalhando num trabalho compulsório para cumprir as cláusulas da carta de alforria. Então como é ele aparece ali? Onde é que ele está? Não está, né? Os libertos trabalhando por casa e comida, também não são assalariados, né? Os libertos trabalhando para pagar dívida não estão ali. Então, isso os processos crimes e os contratos, eles me permitiram fazer essas problematizações dos dados do censo. Então, para mim foi fundamental para a minha tese, né? Foi um trabalho gigante, porque eu esgotei toda a documentação que tinha para Cruz Alta, deu trabalho, a gente fica no Arquivo, vem toda semana, já conhece todo mundo. Eu colocava o Jorge como um doido correndo atrás de processos para mim, ia atrás da Neide… Mas, tem que fazer isso, né? Lá pelas tantas a gente começa a sonhar, eu sonhava, assim, com… você sonha! (risos). Porque você está ali. Quando eu fui fazer a estrutura de pós, então gente, era um tal de contar boi. Você tem que fazer isso, né? Olhar ali as propriedades, nossa! Aquilo para mim, sabe? (risos) Eu sou historiadora qualitativa e quando você vai para fazer essa questão mais quantitativa, para a estrutura de pós, isso para mim foi meio um desafio. Entrava num desespero para fazer aquelas quantificações ali, mas fiz…

Tu encontraste testamento e inventário de libertos, de pessoas negras?

Pouquíssimos. Acho que inventários eu achei uns dois e testamento um. Muito, muito poucos… e parcos recursos. Você vê ali a pobreza, o processo de exclusão ali, quando você vai ler esses documentos. Mas foram muito poucos ali, uns dois ou três, assim…

Eu queria te pedir para falar um pouco sobre os livros notariais. O que tu encontra nesses livros, que tipo de informação?

Os contratos, contratos de prestação de serviços. Eu achei alguns. Eu achei libertos pegando empréstimos com terceiros, escravizados pegando empréstimos com terceiros para pagar a carta de alforria e aí voltando ao cartório para poder assinar o contrato de locação de serviços com esse terceiro, para poder pagar a dívida de liberdade. Então eu acho esses contratos de locação de serviços e também contratos firmados entre libertos e empregadores que, não está ali especificado que emprestou algum dinheiro para pagar a dívida de liberdade. E são contratos também que não tem muitas especificações, né? Então, o liberto vai trabalhar no horário de trabalho que é comum na região. Mas aí que horário de trabalho que é comum? É o horário de trabalho de quem? Porque você tem vários, na realidade, tipos de trabalho em disputa ali, você tem o trabalho compulsório, trabalho escravizado, trabalho assalariado, você tem vários arranjos de trabalho. Então, o horário de trabalho vai ser referente a que tipo desses arranjos? Então, os contratos são poucos, achei muito poucos, acho que não chegou a dez e assim, não tem nenhuma especificação, não são muito específicos. É de acordo com a região. O valor também, o valor do salário também nesses para pagar a dívida de liberdade. Aí eu tive que fazer as contas, né? Aí a gente percebe que a mão de obra é cotada muito abaixo do valor, que daí eu pego o trabalho dos libertos e comparo com esses libertos que estão assinando contrato de trabalho para pagar dívida de liberdade, a mão de obra deles é cotada muito abaixo do valor e aí eles tem que trabalhar um tempo maior. Isso é uma forma de você esticar o máximo essa dominação, esse instrumento de dominação.

Então, para finalizar, uma pergunta mais descontraída. O que a Maria do Carmo faz quando não está pesquisando?

A gente precisa namorar com meu companheiro (risos). Sair para dançar, eu sou dançadeira, gosto de dançar, gosto de ler e ouvir música. Enfim, acho que todo mundo gosta, né? Namorar, dançar, ouvir música, ler um livro… Ler, porque depois que você termina o doutorado, você senta, relaxa e vai ler sem aquela preocupação de ter que fichar, você lê de forma mais descontraída, relaxada. Acho que é isso…

Notícias relacionadas:

Entrevista com Maria do Carmo Aguilar – parte I

Entrevista com Maria do Carmo Aguilar – parte I

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Maria do Carmo Moreira Aguilar é licenciada em história pelo La Salle (2009), mestra (2012) e doutora (2018) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É coautora do laudo histórico-antropológico de reconhecimento da comunidade quilombola do Rincão dos Caixões e agora trabalha naquele de reconhecimento da Família Machado.

Maria, queria te pedir para falar um pouco sobre a tua trajetória acadêmica.

Bom, eu iniciei a minha graduação em 2005 lá no La Salle, logo quando eu iniciei a graduação já fui para a iniciação científica. Na iniciação científica eu participava de um projeto em uma comunidade quilombola que era a Chácara das Rosas, é um projeto de memória e identidade quilombola e nesse projeto a gente trabalhava com história oral. 2019.10.02 Maria do Carmo AguilarEntão, eu ia com a orientadora, o grupo de pesquisa, participava das entrevistas, fazia as transcrições, tinha as leituras, mas a fonte era fonte de história oral. Então fiquei na iniciação científica, eram dois projetos, um com Chácara das Rosas e outro com Manoel Barbosa que são da mesma parentela, um em Canoas e outro em Barro Vermelho, Gravataí. Aí eu estava na iniciação científica e nesse período eu conheci o Vinícius, Vinícius Pereira de Oliveira, quefoi o historiador que fez e participou do relatório socioantropológico da Chácara das Rosas. A gente começou a conversar, trocar bibliografia, ele me indicava autores e livros. Aí ele me convidou, ele estava compondo a equipe da elaboração do laudo sócio histórico-antropológico da comunidade do Rincão dos Caixões, que fica em Jacuizinho no planalto do Rio Grande do Sul, aí ele me convidou para participar da elaboração desse relatório. E aí que deu meu primeiro contato com o Arquivo Público, porque antes disso as minhas fontes eram, basicamente, história oral; aí eu vim para o Arquivo, pesquisei inventários, processos crimes e aí deu-se o meu primeiro contato com Arquivo Público. Aí eu me formei e quando eu conheci essa comunidade o meu tema de mestrado começou a ser elaborado, ali na graduação eu já comecei a pesquisar algumas coisas e aí no mestrado os sujeitos da minha pesquisa foram os quilombolas dessa comunidade. E aí, mais uma vez foi com história oral, né? Então trabalhei com história oral, mas vim também aqui no Arquivo fazer pesquisas pontuais sobre alguns aspectos do contexto do pós-abolição e rever alguns fichamentos que já tinha feito nesse projeto, na elaboração do laudo. E aí eu terminei a dissertação e também no andamento da dissertação veio o tema, a proposta da minha tese. A minha tese foi sobre a relação de trabalho de libertos pós-abolição e aí eu me joguei no Arquivo, aí sim eu vim para o Arquivo, pesquisei inventários, processos crimes, livros de transmissão de notas, aí a base da minha pesquisa foi o acervo documental aqui do Arquivo Público, na minha tese.

E como tu encaras o compromisso social do historiador que trabalha com comunidades remanescentes de quilombos ou outros temas sensíveis?

A gente está lidando com pessoas vivas, né? É uma demanda extremamente atual! Eu tive todo o cuidado na minha dissertação na questão das discussões que ei ia fazer, as discussões dos laudos, como eu faria essa discussão de uma forma que a discussão que eu colocasse ali não fosse capturada para contralaudos. Então, eu tive toda essa preocupação. Eu sou historiadora e sou ativista também, então, a minha pesquisa de mestrado teve todo o rigor acadêmico, a objetividade, estar bem fundamentada, mas ela foi criada para servir de instrumento de demandas daquela comunidade quilombola. Então, o meu objetivo era também esse de que servisse para demandas da comunidade como serviu. Então eles pegaram a minha dissertação, colocaram de baixo do braço e foram bater à porta da Prefeitura reivindicando direitos dizendo “Olha, nós temos um livro contando a nossa história, meu antepassado fulano de tal foi escravizado nessa região e está aqui e isso, isso, isso, isso…” e demanda os seus direitos. Então tem toda essa preocupação. A gente é muito impactada, acho que a primeira vez que eu cheguei numa comunidade quilombola e que você vê aqueles sujeitos e aquelas demandas, você conversa com eles igual, conversando com a Dona Funé, a Dona Edoilde, acho que uma tinha 102 e a outra 98 [anos de idade] e elas contando que o pai contava o que o avô contava, elas estavam relembrando coisas do tempo da escravidão. Então, nossa, elas conviveram; aí elas falavam “a minha bisavó foi escravizada e eu convivi com ela, ela sentava na beira do fogão” e contava os casos das tristezas como que era, então você ficando ali com aquelas pessoas e elas estão reivindicando seus direitos, isso dá aquele impacto. Eu tive todo esse cuidado na minha escrita, que a minha escrita fosse servir de mais um instrumento para as demandas quilombolas. E é muito bacana isso, porque eu me lembro que estava lendo a questão da economia interna dos escravizados e tal, e eu estou lá em Rincão dos Caixões a seis horas de distância de Porto Alegre, a gente chega na cidade e ainda tem que andar de carro uma meia hora de estrada de chão batido, estou sentada lá com o senhor Etuíno e aí eu pergunto “Com quem o senhor aprendeu a plantar?”, “Ah, com o meu pai, que aprendeu com o meu avô, que aprendeu com o meu bisavô e o meu bisavô é lá do tempo dos escravos”, eles contavam que tinham um pedacinho de terra para plantar; “era só um pedacinho que o senhor deixava para plantar só para comer mesmo, né?”, aí você, poxa… que fantástico. Isso a gente só consegue quando vai lidar com essas pessoas, com essas pessoas que estão vivas, porque quando a gente vem aqui para o Arquivo vê os processos e tal, mas é quando a gente sai para as comunidades quilombolas a gente vê essa memória, essa coisa viva, isso é muito bacana. Não sei se eu te respondi…

Eu acho que sim e tu também deixou um gancho para a próxima questão. Como tu vê esse cruzamento entre a oralidade e a escrita, entre a fonte oral e a fonte escrita?

Elas são, as duas, importantes, né? Eu acho que na minha dissertação uma complementou a outra. Mas, eu usei muito pouco fontes escritas na minha dissertação e mais fontes orais. E não senti falta. Tem toda uma questão em torno da história oral. Tinha, né? Não se tem mais em torno da história oral, mas eu não senti a necessidade de “Ah, tem que comprovar aquilo que a Dona Erocilda está falando”, não, é o que ela está falando, é isso! Mas eu acho que são fontes que elas se complementam, uma complementa a outra. Eu, na minha dissertação, vim para o arquivo para poder mostrar esse contexto com pós-abolição que eles estavam falando, então tentei mapear um pouco esse contexto, mas eu não vim para o Arquivo tentar comprovar a partir de uma fonte escrita o que eles estavam me dizendo. Mas eu acho que são duas fontes… A história oral, eu gosto de trabalhar com história oral, mas é difícil trabalhar porque eles subvertem os nossos marcos temporais o tempo inteiro. Você vê, eu venho aqui para o Arquivo, na minha tese de doutorado o meu marco é 1870 a 1900, então eu pego os processos de 1870 a 1900. Mas quando eu vou para uma entrevista o meu marco é 1960, mas eles não estão nem aí para o meu marco, eles vão contar história lá da época do cativeiro e volta e vem e vai; e as senhoras que a gente faz entrevistas com elas, conversam entre elas e ignoram a gente por completo. A gente fica ali tentando, mas eles vão subvertendo e é interessante como é que a história oral problematiza as fontes. Então, na minha dissertação, os meus entrevistados estão sempre subvertendo marcos e problematizando 1888 como marco universal do trabalho negro, eles estão dizendo que “Não é bem assim do jeito vocês estão falando nesses livros, aqui nós tivemos tentativas de captura do trabalho negro aos moldes do trabalho escravo”, eles estão falando de 1930, 1920 e 1940, então eles problematizam. Na dissertação, eu também utilizei história oral para problematizar esses nossos marcos, porque a gente cria esses marcos muito fixos ali e os entrevistados subvertiam o tempo inteiro esses nossos marcos.

Na próxima semana, confira a continuação da entrevista com Maria do Carmo Aguilar!

Entrevista com Jonas Moreira Vargas – parte II

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Na semana anterior, Jonas Vargas encontrava-se explicando as metodologias empregadas nos seus trabalhos.

Bom, uma questão que eu acho importante é que tu utilizas bastante fontes menos visitadas pelos historiadores, como os processos de liquidação, as ordinárias e com isso tu encontras cobrança de salários de trabalhadores livres, rendimento da empresa charqueadora, aquisição de escravos, cartas, dinâmicas e conexões do comércio. Então eu queria te pedir para falar um pouco sobre o potencial inexplorado do Arquivo Público.

É verdade. Foi uma documentação que, no início, eu estava muito receoso de mexer porque eu vi nos catálogos que era muita coisa e ninguém, praticamente, utilizava, e esses processos da vara cível e comércio, nossa, é uma mina de ouro! Muita coisa… Eu lembro quando eu terminei a tese eu pensei “depois eu vou voltar nisso porque tem muita coisa bacana”, é fazendeiro cobrando charqueador por gado que não foi pago, trabalhadores cobrando salários que não foram pagos e coisas do tipo. Os processos de falência ajudam a visualizar como as famílias administravam internamente os negócios das charqueadas. Eu acho impressionante como tem documentos desses fundos e que eu acho que precisam ser melhor explorados; as contas de tutela também, as gavetinhas que tem ali, que passaram muito tempo procurando, tem tipos de processos que eu nem sei para quê que serve. As vezes, eu pedia para dar uma olhada e encontrava informações preciosas e acabava usando. Mas, esses documentos que tu falaste, eu não cheguei a usar eles de forma sistemática, eu lembro que eu ia abrindo e abrindo, porque no final da tese a gente já está correndo né, e eu focava só naqueles que tinham charqueadores com o meu interesse, mas tem muita, muita coisa; comerciante inglês cobrando liquidação de firmas comercias daqui, o Mauá aparece muito na documentação, acho que não tem como alguém escrever sobre o Mauá e não dar uma olhada nesses processos que tem aqui. Ele estava envolvido com firmas exportadoras de couro e charque e importadoras de sal. Foi um cara importante naquele sistema mercantil. Mas, eu ainda tenho a esperança de voltar e tentar dar conta disso (risos).

Outra coisa que me chama a atenção no teu trabalho foi que tu verificas que alguns dos charqueadores mais ricos de Pelotas tem fortunas que estão par a par com os caras mais ricos do Império. E a impressão que tenho, que ia te pedir para falar um pouco sobre isso, é que essa é uma descoberta muito importante que não adquiriu a repercussão necessária, não sei se tu concordas comigo em relação a isso.

2019.09.11 JonasEntão, Rodrigo, eu migrei da história política para a história econômica um pouco porque eu não tinha muita interlocução na política, nos últimos anos está se estudando muito a política no século XIX e como eu fiz o doutorado lá no Rio tem muito dessas discussões da história econômica sendo realizadas. Analisando os inventários aqui do Arquivo eu pude perceber que tinha um grupo de charqueadores muito ricos e daí comparei com o de outras elites, cafeicultores, senhores de engenho, comerciantes, os de Pelotas tinham grandes fortunas mesmo. Então, o pessoal lá apresentava nos eventos e eles achavam algo bastante interessante, mas aqui no Rio Grande do Sul, como a história econômica está em queda já faz muito tempo, o pessoal não deu muita importância para essa descoberta que, de fato, tu tens razão, porque verificar que alguns setores estavam produzindo para o mercado interno com propriedades bem menores que as do centro do país, as fazendas de café e os engenhos e tal, conseguiram acumular fortunas muito próximas das elites desses grandes centros é algo muito importante, assim, na minha opinião, porque reverte um pouco daquelas explicações mais clássicas dentro da história econômica, a gente pode pegar Caio Prado Júnior, Celso Furtado, enfim; de que o grosso da riqueza no período era gerado pela agro exportação. Então, eu apresentava em alguns eventos no centro do país e o pessoal “poxa, fabricante de carne seca ganhava tanto dinheiro assim?”, mas mostra os inventários e tudo, não dava muito dinheiro, mas também tem que ser colocado que é um grupo de famílias que conseguiu acumular suas fortunas, bastante em detrimento de outras famílias charqueadoras que foram quebrando ao longo do período e também de que esse grupo que conseguiu acumular é um grupo que também atuava no comércio, no comércio marítimo. Então é uma riqueza que ela vem da produção sim do charque, mas ela também vem do comércio e também vem do preço do gado. Então, são famílias que eu chamo de empresas familiares, que diversificavam seus negócios e que deixaram uma grande fortuna para os seus herdeiros, enfim… A concentração de riqueza no município também era muito grande. Isso era no Brasil inteiro e acho que meu trabalho ajuda a mostrar a reprodução dessa desigualdade social ao longo do tempo. E essa riqueza também foi acumulada a partir da exploração dos trabalhadores escravizados, né. No final da década de 1870 Pelotas tinha uma das maiores concentrações de cativos do sul do Brasil. Quando acabou a escravidão, o número de charqueadas despencou de quase quarenta para menos de quinze estabelecimentos.

E quais documentos tu estás pesquisando agora no Arquivo Público?

Então, eu estou me dedicando mais a pesquisa nos processos criminais mesmo.

De Pelotas?

De Pelotas. Um projeto que eu estou quase finalizando e pretendo escrever um texto, é de localizar trabalhadores negros nas charqueadas do imediato pós-Abolição. Alguns certamente já eram trabalhadores nas charqueadas no período da escravidão. Claro que é bem difícil delimitar isso, mas eu achei que não ia encontrar muita coisa, eu analisei uns dez anos depois da abolição e encontrei e estou encontrando bastante coisa, acho que vai dar um artigo legal. E uma coisa que eu faço muito aqui, tu sabes que dou aula na UFPEL e os alunos gostam muito dessa fonte e eu estou ajudando eles, orientando TCC e aí eles dizem o tema que eles querem pesquisar, eu venho aqui, procuro, fotografo e levo para eles lá. Inclusive eu estava aqui fotografando, né? Tem uma aluna que está tentando estudar feminicídio em Pelotas no século XIX ou algo desse tipo e aí eu encontrei uns processos para ela e estou fotografando. Eu costumo fazer isso, porque não tem como ele vir para cá, gastar com hospedagem, alimentação e tal. Eu gosto de plantar essa sementinha da pesquisa neles, eu vejo que eles curtem e eles não têm como vir, então eu ajudo nesse sentido. Então, eu acabo pesquisando para mim e fotografo algumas coisas para eles também, na medida do possível.

Então tá, Jonas. Essas eram as questões, muito obrigado!

Eu que agradeço, muito obrigado!

Entrevista com Jonas Moreira Vargas – parte I

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Jonas Moreira Vargas é professor no departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Graduou-se em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2004 e defendeu seu mestrado na mesma instituição em 2007 (dissertação premiada no concurso de teses e dissertações da ANPUH – RS, em 2008). Defendeu sua tese de doutorado em 2013, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (menção honrosa do concurso de melhor tese de doutorado da Associação Nacional de História no biênio 2013-2014). De volta à UFRGS, realizou estágio pós-doutoral entre 2014 e 2015. Sua dissertação e sua tese foram publicadas: “Entre a Paróquia e a Corte – os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1850-1889)” (Editora UFSM / ANPUH, 2010) e “Os Barões do charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX)” (Óikos, 2016).

– Jonas, queria te pedir para falar um pouco da tua trajetória profissional e das principais pesquisas que tu realizaste.

Então, eu considero que o meu primeiro grande trabalho com fontes e com arquivos, início da trajetória profissional, foi quando eu fui estagiário do Memorial do Judiciário aqui no Rio Grande do Sul. Eu lembro que escolhi estudar os juízes de direito no Rio Grande do Sul, os magistrados, fazer uma prosopografia dos juízes de direito que atuaram na província entre 1833 e 1889, ver a prática mesmo da Justiça no cotidiano. E aí eu tive contato com o meu primeiro acervo que foi o Arquivo Histórico, nessa ocasião eu conheci o Paulo Moreira e a gente sabe que o Paulo, se tu conversas com ele um pouco, ele te dá várias dicas, se empolga e tudo. E aí eu acabei vindo pesquisar aqui no Arquivo Público, que nesse primeiro momento eu não utilizei muito as fontes do Arquivo. Logo depois eu entrei para o mestrado na UFRGS e aí eu já tinha esse meu interesse de estudar as elites, né? Acho importante estudar elas porque as decisões que elas tomam afetam um grupo muito maior de pessoas, acabam afetando nossas vidas, com projetos muitas vezes contrários ao da maioria da população. E aí no mestrado eu trabalhei basicamente com as famílias da elite política daqui do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX, até o fim da Monarquia. E depois, no doutorado, continuei o meu interesse pelos estudos das elites, mas em vez de estudar, digamos, os mais poderosos relacionados a política, eu tentei investigar as famílias mais ricas, aí eu fiz um recorte sobre os charqueadores em Pelotas. Aí foi um trabalho, que aí sim, o Arquivo Público foi a minha segunda casa, porque eu pesquisei muito aqui e foi fundamental para a minha tese. Entre o mestrado e o doutorado, eu fui professor substituto em Santa Maria na federal, aprendi muito lá. E ainda depois do pós-doutorado na UFRGS, eu comecei a pesquisar um pouco o caudilhismo, o pós Revolução Farroupilha e logo depois eu fui para UFPEL, que é onde eu estou. Mas, basicamente, eu destacaria isso.

E qual é a importância das fontes do Arquivo Público nas suas pesquisas, principalmente no doutorado que tu mencionaste que tem uma base mais forte no Arquivo Público?

2019.09.04 Jonas

Eu gostaria de começar respondendo essa pergunta falando um pouco da minha pesquisa de mestrado, porque eu acho importante, né? Porque a princípio se tu examinares o rol de fontes que tem no Arquivo Público, tu achas que não dá para se trabalhar com história política. Mas, como no mestrado eu estava predisposto a fazer uma história social da política, porque muitos da historiografia tradicional trabalhavam só com o anais da Assembleia, com imprensa, com o programa dos partidos e eu achei que outros tipos de documentação poderiam ser possíveis de ser tratados, a partir do ponto de vista da história social da política. Então utilizei processos crimes, inventários de Deputados, crimes em que os escravizados deles estavam envolvidos, ações que eu encontrei aqui para o alistamento eleitoral, então, eu comecei a perceber a riqueza da documentação daqui. Os inventários e os processos crimes são os que eu mais gosto. E aí já com essa experiência no doutorado, sim, como eu estava focando mais nas famílias mais ricas de charqueadores, eu pesquisei muito aqui os inventários post-mortem em Pelotas para fazer uma estrutura de posse dos cativos, os níveis de riqueza, o perfil dos investimentos dessa elite e analisar o patrimônio da população pelotense no período, mais na segunda metade do XIX. Os processos crimes também; crimes envolvendo escravizados nas charqueadas eu pesquisei muito aqui também. E os registros notariais de compra e venda, muita coisa, nossa… Essa documentação foi importante pra mostrar que as charqueadas de Pelotas não perderam escravizados para os cafezais do sudeste como se defendia. E aí ajudou a traçar então esse perfil socioeconômico da população pelotense, esses movimentos desses padrões no tempo e tal. Então, foi fundamental, eu tive aqui a minha tese e ela não teria surgido se não fosse a documentação aqui do Arquivo.

– Eu queria te pedir para falar um pouco sobre as metodologias que tu utilizaste…

Então, tanto no mestrado, como doutorado, eu fui fortemente influenciado pela micro-história italiana, principalmente pelos textos do Giovanni Levi, sobre estratégias familiares, mercado de terras, mediação política. Mas, eu destacaria assim, mais o método da prosopografia que, para quem não sabe é a análise de diversas biografias de um grupo em comum buscando tentar traçar um perfil coletivo deste grupo a partir de um questionário, uma origem social, trajetória, carreira, padrão de recrutamento, casamento, relações familiares e a partir do mestrado eu comparei então a elite do Partido Conservador com o Partido Liberal; se tinha uma ideia na historiografia que o Partido Liberal representava os interesses dos estancieiros da região da campanha e a partir do método prosopográfico eu mostro que isso não acontecia, o Partido Conservador estava muito presente na campanha e se tem um partido que representava os interesses dos estancieiros foi mais o Conservador. E no doutorado, esse método, eu utilizo também para ver o que diferenciava as famílias mais ricas de charqueadores das menos ricas, no caso. Qual seria, talvez, brincando, né, o segredo dessa… por que um grupo de famílias estava no topo dessa hierarquia social e conseguia de uma geração para outra reproduzir essas estruturas patrimoniais e comportamentais, e enfim…? E também um método que eu gosto bastante é a análise de redes sociais que eu uso muito. Na política é muito importante as relações que os parlamentares tinham com outras famílias de outras províncias do interior, como eles manejavam isso para ganhar as eleições e aí as correspondências é uma fonte muito importante para essa metodologia, eu acabei explorando ela mais lá no Arquivo Histórico. Acho que é importante o historiador cruzar vários métodos, né. Dependendo do objeto de pesquisa, das fontes e tal.

Confira a continuação da entrevista com Jonas na próxima semana!

Entrevista com Paulo Roberto Staudt Moreira – parte 4 de 4

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Hoje compartilhamos a última parte da entrevista com o professor Paulo Roberto Staudt Moreira. Na semana anterior, parte 3, o entrevistado observava o vigor e a riqueza da pesquisa empírica no Rio Grande do Sul.

Rodrigo:

– Mas ao mesmo tempo a gente percebe, não tem nenhum estudo mais consistente sobre isso, mas a gente percebe, a intuição que se tem muito claramente e tem a mesma intuição de outros arquivos, é a diminuição, talvez, do número de frequentadores nas salas de pesquisa, diminuição dos frequentadores dos arquivos. A gente tem alguns movimentos contrários, a gente tem essa renovação e esse enriquecimento da historiografia, mas a gente tem uma diminuição, um recuo ao período anterior do número de historiadores que tem essa pesquisa empírica. Então, a gente queria perguntar se tu acha que tem um risco de um empobrecimento da produção historiográfica com esse recuo por procura aos arquivos, ao mesmo tempo em que existem profissionais da História que meio que exortam a abrir mão da pesquisa empírica, secundarizar, como se não fosse tão importante assim…?

2019.08.07 PauloPaulo:

– Eu acho que a gente teve um crescimento, assim, geracional da questão empírica. Quer dizer, a minha geração sentiu direto isso, era uma empolgação de ir para arquivo e pesquisar documentação de arquivo de uma forma intensa, muito quantitativa e tal, a gente foi muito para arquivo e foram gerações nesse sentido. Eu não consigo ainda avaliar direito, não sei se a gente pode nesse momento avaliar se a diminuição do público de arquivo ela está diretamente ligada a uma diminuição da utilização de fontes primárias na pesquisa histórica ou se é um pouco do impacto da tecnologia. Porque hoje em dia a gente tem várias fontes primárias que estão disponíveis na internet, por exemplo, quem já caiu na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional sabe disso, a gente enlouquece lá. Então tu tem muitos jornais a disposição, tu tem muitos acervos que estão ligados a essa questão. Acho que também as pessoas que vem para o Arquivo, muitas vezes, é uma frequência rápida, a máquina digital possibilita isso, então, as pessoas vão para os arquivos e fotografam e levam para casa pesquisar. Os tempos de mestrado e doutorado são muito exíguos, um mestrado de dois anos, cara, é muito pouco tempo. Então as pessoas têm que otimizar muito isso. Eu ainda não estou vendo essa questão muito de um recuo da empiria, assim, eu acho que a gente ainda está numa certa onda mais empírica que eu espero que se mantenha, só que eu acho que os próprios prazos estão prejudicando que o pessoal faça pesquisas mais exaustivas. É por isso que normalmente o cara que vai fazer uma boa pesquisa no mestrado, ele já vem com essa pesquisa como bolsista de iniciação científica, ele já está inserido num projeto, então, eu acho que nesse sentido a gente vai verificar isso. O que eu sinto como historiador é que a gente perdeu um pouco dessa sociabilidade arquivística, assim, sabe? A gente tem frequentado muito pouco arquivo. Às vezes eu acho que certas iniciativas dos arquivos, como eu tenho visto aqui, me parece muito positiva, por exemplo, a Mostra do Arquivo Público eu acho muito legal, não tenho vindo nas últimas, mas as primeiras que a gente teve era muito bom. Era a gente vir para arquivo para discutir pesquisas entre pessoas que frequentavam o Arquivo, então, isso era um ambiente que saía um pouco das disputas institucionais e tal, e o Arquivo aparecia como tipo um oásis, assim, “Venham aqui discutir as suas pesquisas”. Então eu não sei, eu ainda não consigo avaliar direito que a gente está tendo um recuo do empírico, eu acho que a gente ainda tem que pensar um pouco a respeito disso, um pouco esse impacto tecnológico, as fontes sendo disponibilizadas pela internet e tal, não sei ainda como é que isso vai impactar. O que eu vejo é que há um certo desânimo com as ciências humanas em geral, eu acho que tenho visto muita gente deprimida na pós-graduação, doente mesmo pelo clima político que se instalou no país nos últimos tempos, de agressividade a determinados temas, temas mais reivindicatórios que dialogam com a contemporaneidade, questão de gênero e também, assim, tenho visto pessoas que sentem muito o impacto da própria profissão de professor, porque tu termina um mestrado, tu vai ser professor, doutorado, tu vai ser professor, então, o impacto disso, assim, negativamente dentro do nosso ethos profissional, a gente tem sido muito achincalhado. Eu vejo muito isso, as pessoas se sentindo muito tocadas por essa questão. Mas eu continuo achando que a investigação empírica é muito importante para nós. Acho que é um pouco da coisa do campo, que é de você sair da Academia e ir para campo, seja tu fazer história oral, seja tu frequentar arquivo, isso mexe com a tua sensibilidade. Produzir uma investigação que tenha esse contato com fontes, seja elas de que origem for, eu acho que acaba modificando a tua sensibilidade ou aprimorando a tua sensibilidade com relação aos projetos de pesquisa e também os objetos de pesquisa.

Rodrigo:

Mas tu não achas que de parte [da academia], de dentro, não vem, por alguns setores, um questionamento à pesquisa empírica?

Paulo:

Pode ser, e eu acho também que, uma coisa que eu vejo e percebo em alguns colegas, a gente hoje em dia está numa onda que não sei como vai sair, porque somos corresponsáveis disso: nós estamos numa superprodutividade, a gente é obrigado a produzir muito em termos de artigo, não só de produção técnica, de dar parecer, mas de produção bibliográfica, escrever artigo, capítulo de livro e tal. E a pesquisa empírica, ela não é algo rápido de fazer, então, se você pensa um projeto de pesquisa e tem como lastro a pesquisa empírica, tu pensa em algo que tem um tempo de maturação mais longo e que, muitas vezes, tu não consegue durante esse tempo produzir coisas, mesmo que sejam resultados parciais. Hoje em dia a gente tem produzido muitos resultados parciais, a gente não está dando tempo de a pesquisa terminar. Então, eu vejo em alguns colegas de que se você faz um projeto de pesquisa cujo lastro é a documentação empírica, a fonte primária, é a frequência em instituições que custodiam, quer dizer, a frequência a lugares de memória propriamente dito, isso demanda que o tempo que tu tem de produção bibliográfica e de produção intelectual é um tempo maior. Então, nesse sentido, talvez sim. Talvez o que eu tenho percebido, as vezes, é um acréscimo ou um desvio para projetos de discussão mais historiográfica. Mas eu acho que isso está muito ligado a essa armadilha que a gente se colocou que é da superprodução, de que a gente tem que produzir. Hoje em dia o mundo acadêmico não permite que tu termine teu projeto para produzir alguma coisa, tu é demandado a, durante o projeto, ir produzindo produtos ocasionais, subprodutos daquilo. Então, trabalhar com documentação empírica tem isso, tu está alicerçando o teu projeto numa potencial produção de no mínimo médio prazo, é no mínimo médio prazo, ninguém vai se jogar numa pesquisa empírica e produzir a curto prazo. Isso pode gerar uma certa timidez dos historiadores de pensar uma pesquisa que – os colegas não empiristas não vão gostar – mas de uma pesquisa mais cômoda, talvez, uma pesquisa que tu realize de forma historiográfica e tal. Acho que a gente perde o prazer da pesquisa, acho que quem faz isso não sabe o que está perdendo. Porque nada como sentar a bunda num arquivo e saborear um processo-crime… (risos) é genial isso, é muito bom.

Rodrigo:

– Bom, uma última questão. Em um mundo de pós-verdades, de narrativas autovalidadoras, como tu percebe a importância dos arquivos para a historiografia?

Paulo:

– Eu acho que o Arquivo, quando eu digo que o arquivo ele tem sentido para mim, que é sentido político, para mim dialoga diretamente com essa questão mais profissional, mais historiográfica. Eu acho que o documento, a fonte primária, a frequência em arquivo, para mim, ela representa um pouco, não vou dizer a garantia porque isso me parece muito empirista e positivista, mas eu acho que é um certo investimento quanto historiador numa história que não desiste de ser explicativa, de uma história que não desiste de ser interpretativa, de montar um discurso historiográfico. Às vezes, eu sinto um certo receio das pessoas de construírem essa verdade histórica com medo de virar vitrine, com medo de receber pedrada e fazerem críticas. Mas eu acho que o acesso a esses documentos de experiência humana no passado nos ajudam a pensar essa ideia de que a história pode construir, pode elaborar um discurso explicativo e sempre um discurso que dialoga entre passado e presente. É um discurso que, as vezes, é muito cheio de ansiedade, né? Quando o presente nos oprime e nos enche de ansiedade, mas é também um discurso que nos enche de esperança, porque a gente sabe que vai passar. Então, eu acho que a possibilidade de construção de um discurso histórico explicativo, para mim, eu sei que tem historiadores que não estão nessa perspectiva, mas eu acho que eles ajudam a gente pensar numa história que construa algo, um discurso do entendimento do passado, assim como um diálogo com o presente. Para mim é um pouco essa questão.

********

A partir do mês de setembro, voltamos com o “APERS Entrevista” sempre na primeira e na segunda quarta-feira de cada mês. Nos acompanhe. Até lá!

Entrevista com Paulo Roberto Staudt Moreira – parte 3 de 4

Deixe um comentário

Na semana anterior, segunda parte da entrevista, Paulo Moreira vinha falando sobre o seu trabalho de pesquisa com as cartas de alforria, contando em seguida sobre sua participação na equipe de elaboração do relatório de reconhecimento da comunidade de Morro Alto (Osório / Maquiné – RS) como remanescente de quilombo.

logo apers entrevista

E aí depois, bom, depois das cartas de alforria ou meio paralelo com isso teve o Morro Alto, que foi uma experiência que, para mim, me jogou em outras searas que era a questão da história oral, de trabalhar com pessoas vivas, o que para mim até hoje é uma coisa meio dramática de participar de entrevistas e tal, que para mim foi uma experiência genial, é uma coisa que lincou muito. Se eu pensava esse passado escravista dentro de uma perspectiva política de diálogo com a contemporaneidade, trabalhar com o Morro Alto foi me jogar na contemporaneidade, foi me jogar para uma demanda contemporânea viva, lincada de uma forma muito legal na minha vida, porque isso é de uma reivindicação lá da constituição de 1988, das disposições transitórias, dos direitos que as comunidades quilombolas teriam de reivindicar seus direitos à terra. Para mim, na verdade, linca dois períodos da minha trajetória profissional e de vida, que é eu lá no início da graduação pensando nisso que seria a comemoração da lei Áurea em 1988 e aí depois essa questão toda da Constituição e tal, e depois, já nesse século agora, fazendo essa pesquisa de Morro Alto. Para mim foi, assim, sei lá, trabalhar num grupo interdisciplinar, de trabalhar com gente que é da Geografia, gente que é da Antropologia, de gente que é da História, trabalhar com uma fonte que para mim era completamente desconhecida e que, na verdade, eu não retomei basicamente depois, ou muito pouco, que a questão da história oral. Então, entrar em contato com essas comunidades, perceber a demanda e perceber também como os trabalhos da gente, trabalhos muito isolados, muito distantes, acadêmicos, eles dialogam com essas reivindicações contemporâneas atuais, de como elas são importantes para isso e como esse passado escravista é recente, é um troço que eu fico apavorado. Eu sempre lembro… Como que é o nome da senhora lá que a gente entrevistou?… A Dona Aurora… A Dona Aurora que, a gente conversando com ela, a gente se deu conta de que ela era filha de um escravo, era filha de um escravizado e ela tinha tido um contato com um cara que tinha sido, que tinha a experiência de ser escravizado, e ela tinha uma experiência de décadas convivendo com esse cara que era o pai dela! E estava ali, era uma coisa impressionante, né? Então, isso para mim foi um choque, um choque político. As vezes a gente sabe as coisas, a gente se conscientiza de que o nosso trabalho tem relevância política contemporânea, mas tem certos momentos que a vida nos joga isso muito na cara, evidencia tudo. Morro Alto foi isso, né? De perceber o link da nossa pesquisa histórica com essas demandas contemporâneas de comunidades ainda atuantes e reivindicando o próprio inventário de Morro Alto, da Rosa, que nunca saiu, que nunca foi concluído, como o pessoal da comunidade dizia, de uma forma meio mítica. Eles diziam assim: “Olha, isso aqui nunca foi demarcado e quando for demarcado o morro vai cair”. Quando a gente encontrou o inventário aqui, o inventário não foi terminado justamente por isso, porque eles teriam que chamar os descendentes, os moradores da senzala, os escravizados que receberam direitos no testamento e os herdeiros resolveram não chamar porque isso comprometeria a própria distribuição da herança. E aí eles justificaram dizendo que eles não tinham encontrado esses herdeiros, que eles tinham se dispersado, e aí no final das contas o inventário não foi terminado. Então, essa experiência para mim foi marcante, foi de ter contato com uma comunidade atuante e reivindicatória, foi muito legal. E isso de certa forma eu acho que… Eu nunca tinha pensando muito nisso, mas talvez isso tenha me alertado para o legal, que seria trabalhar com o período pós 88, que é uma coisa meio pós-Abolição. Isso, para mim, me caiu muito. Também foi uma provocação das próprias fontes, que é a pesquisa que até hoje eu tenho… Que foi o que me jogou muito para o pós-Abolição que é trabalhar com Aurélio Viríssimo de Bittencourt. Eu acho que foi um pouco isso, porque mais ou menos nessa época eu já tinha terminado o doutorado e tal, mas eu sempre estava vasculhando e procurando, trabalhava no Arquivo Histórico. E aí eu comecei a pesquisar documentação eclesiástica, que era algo que eu conhecia, mas não tinha, assim, tanta intimidade. E comecei a constatar que… Bom, eu estava levantando os registros de batismo, de casamento de escravizados lá na cúria metropolitana de Porto Alegre e toda hora aparecia como padrinho, seja de casamento, seja de batismo o tal de Aurélio Viríssimo de Bittencourt. E a gente sabe, que quem faz nominal, quem segue o rastro nominal, a gente sabe que se tu tiver que seguir um cara chamado Paulo Moreira, tu está ralado, porque tu tem tantos homônimos que tu não vai conseguir encontrar o desgraçado. E para gente é complicado porque, muitas vezes, tu trabalha personagens que só tem prenome, então complica ainda mais. Por isso que muitas vezes tu pesquisa é o senhor daquele sujeito escravizado, família senhorial que é onde tu vai encontrar isso. Mas quando eu encontrei um cara chamado Aurélio Viríssimo de Bittencourt, eu pensei “Pô, esse é um nome que dá, né?”; e ele aparecia repetido e eu comecei a vasculhar e pensar quem era esse sujeito. Eu fui conversar com um conhecido meu que era do Instituto Histórico e Geográfico aqui do Rio Grande do Sul e perguntei para ele, assim: “Escuta, tu já ouviu falar de Aurélio Viríssimo de Bittencourt?” e ele disse: “Claro que sim, o cara era chefe de gabinete do Júlio de Castilhos” e eu disse: “Porra, não pode ser!” aí ele: “É sim!” e eu olhei para o cara e falei: “Eu tenho pressentimento que esse cara era negro.” E ele olhou para mim e disse: “Não. É impossível, ele não era negro”, e eu disse: “Por que ele não era negro?”, ele disse: “Porque ele era filho de um oficial da Marinha.”2019.07.31 Paulo (Risos). Porque a minha cara era uma sociedade, no Brasil tem essa coisa. Não que tu vá embranquecer completamente, mas a tua cor invisibiliza, ela desaparece e tu te torna como se fosse um socialmente branco e no caso do Aurélio tinha isso. Aí eu comecei a pesquisar o Aurélio e descobri que não. A gente tem um inventário, não dele porque eu nunca achei, mas tem inventário da viúva dele, tem inventário da primeira mulher dele, tem inventário da mãe dele que morreu lá em Jaguarão, onde ele nasceu e tal. Então, o Aurélio, acho que me jogou um pouco no pós-Abolição, começou a fazer com que eu entrasse no pós-Abolição a partir de algo que eu gosto de fazer cada vez mais, que é a ideia da trajetória e a trajetória é pensar essa vida individual, as opções que essas pessoas têm, as estratégias, as inserções que essas pessoas têm e como ir seguindo aquilo que o Giovanni Levi chama de vicissitudes biográficas, já que a gente nunca vai conseguir reconstituir toda a biografia do cara. Também, a gente não tem que pirar com isso, né? Nem a nossa biografia a gente conhece, né? Com pouco de psicanálise a gente sabe disso, né? Se a gente sentasse com o Aurélio hoje em dia e ele contasse a vida dele, nós íamos duvidar dele. Ele ia fazer uma versão da vida dele que era uma versão dele, como a gente faz da nossa.

Rodrigo:

E os nossos entrevistados de história oral…

Paulo:

Então a gente não tem que pirar muito com isso, né? As vezes, eu pego algumas discussões, assim, entre o que é trajetória e o que é biografia e fica uma discussão que, as vezes fico pensando onde é que a gente vai chegar com isso; porque “Ah não, trajetória é possível porque é mais fragmentado e tal, e biografia é uma coisa mais completa”, mas não rola isso, cara, biografia nunca vai ser completa. Mesmo que tu entreviste o cara, mesmo que tu conte o diário do cara, que o cara conte diariamente tudo o que ele fez, tem muito ilusão biográfica ali dentro, então não tem como tu achar que vai reproduzir na totalidade. Então, para que pirar no que é trajetória e o que é biografia, né? E as vezes, a impressão que eu tenho – e espero que isso não caia mal, se tu achar que cai mal tu não coloca na entrevista (risos) –as vezes eu acho que os pesquisadores que são acostumados a trabalhar sociedades escravistas, eles, talvez, tenham uma certa vantagem quando eles pulam o pós-88, porque eles tem um hábito de certos documentos que muitos historiadores do pós-88, do pós-Abolição, não estão tão acostumados assim. Eu vejo que, bom, para nós que trabalhamos sociedades escravistas, é habitual tu pegar uma habilitação matrimonial, registro de batismo, inventário post-mortem, testamento, de você usar esses documentos, para nós fica, né… E eu acho que quando a gente começou a trabalhar sociedade escravista, quando a gente avança para o pós-Abolição eu acho que tem uma densidade empírica nas pesquisas, não estou falando de mim, estou falando do Rodrigo [Weimer], que eu acho que ajuda a gente a tornar consistentes essas trajetórias. Por exemplo, a tese da Melina Perussatto, a Melina se atreveu a trabalhar com o assunto que é o Jornal Exemplo, porque tu já tem gente boa que trabalhou com isso, tem a Zubarán, tem o José Antônio dos Santos, tem gente que já trabalhou com isso, mas a Melina, ela faz um esforço de pensar esses promotores do Exemplo dentro de uma perspectiva geracional, de ver os caras para trás, que dá uma consistência para essas trajetórias. Quer dizer, tu pensa esses caras como imiscuídos numa estrutura familiar, de parentesco, de redes mais afetivas e tal, tu percebe esses caras ali. Eu acho que tem uma… isso pode ser piração minha, assim, mas a vezes eu acho que a gente tem uma vantagem do pessoal que trabalha com isso. E no caso do Aurélio, foi um cara que me abriu esse campo do pós abolição. Eu comecei a pesquisa do Aurélio ao lado de parceiros, o Jonas [Vargas] que começou comigo e que está em Pelotas agora, a própria Daniela Vallandro de Carvalho começou, a Sherol [Santos], a gente começou juntos trabalhando, porque o Aurélio é um cara que ele está em tudo! E ele permitiu isso, como é um cara que tinha nascido lá em Jaguarão, de um ventre negro e tal, vem para Porto Alegre e se constitui como sujeito negro aqui em Porto Alegre, então eu acho que ele ajudou bastante, assim, a me interessar um pouco mais para essa questão do pós-Abolição, porque eu estava muito nesse período mais na sociedade escravista. E nos últimos tempos me caiu no colo, assim, que foi, literalmente isso, outra figura negra que é do Alcides de Freitas Cruz, que é um cara que, para mim, também, foi genial, porque ele vem de uma orientação. O Ênio Grigio que eu estava orientando e que trabalha com a Irmandade do Rosário de Santa Maria; e de repente o Ênio descobre uma discussão num jornal de Santa Maria em que um cara chama o outro de mulato e o cara, esse mulato, vai para o jornal, faz um a pedido e o cara se apresenta. O cara tinha sido chamado só de mulato, não tinha sido nominado. E aí o cara vai para o jornal e diz: “Meu nome é esse e não sei o quê, não sei o quê… e quanto a ser chamado de mulato, como diz o grande Doutor Alcides de Freitas Cruz, eu não me molesto por epítetos como este porque eu sei quem eu sou e tal”. E quando o Ênio me passou isso eu pensei “Não, só um pouquinho, eu conheço o Alcides Cruz, né? Nome de rua de Porto Alegre, mas eu não sabia da negritude desse cara, não tinha sido alertado para isso”, e aí eu comecei a conversar com várias pessoas, aí a gente encontrou três manifestações de Alcides de Freitas Cruz. Alcides de Freitas Cruz foi formado agrimensor na Escola Militar de Porto Alegre, ele se formou em direito em São Paulo e ele foi fundador da Faculdade de Direito aqui de Porto Alegre. E ele, sorte de historiador, três vezes ele é ofendido de forma racista nos jornais e três vezes ele vai para o jornal se defender. Então, a gente tem uma posição de um cara assim, se posicionando dentro do seu auto-pertencimento e tal, muito bom. E aí, uma outra coisa que é genial é que ele morre em 1916 e ele era professor da faculdade de Direito, o inventário dele está aqui no Arquivo Público e ele deixa uma biblioteca de mais de 3.000 livros. Bom, se isso não fosse pouco… A sorte mesmo é que ele doa os livros para a faculdade de Direito, então, os livros são listados individualmente. A gente tem aqui no inventário a biblioteca dele listada. Então, tu pode, no meio dessa trajetória toda que tu pode fazer do Alcides, trabalhar com a biografia intelectual dele, porque tu pode saber o que ele lia. Então ele lia desde textos sobre Darwin, ele lia Machado de Assis e Shakespeare, então tu pode pirar um pouco nessa coisa das práticas de leitura do cara e isso são coisas que os inventários nos possibilitam. Então, trabalhar com pós-Abolição eu fui meio jogado para isso. E nesse trabalho do Alcides eu fiz com a Vanessa, a Vanessa que é historiadora e arquivista lá da cúria e do Instituto Histórico e Geográfico, então a gente trabalhou juntos e foi uma dobradinha perfeita. A Vanessa é especialista nessa coisa da genealogia e da pesquisa com documentação eclesiástica. A gente recuou a família do Alcides de Freitas Cruz à colônia de Sacramento, a gente recuou até lá e a gente foi encontrando depois os inventários aqui no Arquivo Público, os testamentos e tal, foi bá… é uma possibilidade de construir essas trajetórias. E é interessante que no registro de batismo dele assim, ele já vem de uma família, que é uma família negra, mas é uma família bem posicionada socialmente. Só que é muito interessante, tu pega o livro de batismo, tu abre o livro e tem registros dos dois lados, então, tem um escravizado, porque tá escrito que o cara é escravo, aí depois tem três brancos, está dizendo ali que o cara é branco e tem ele que não tem cor. Então a própria invisibilidade da cor é uma marca de racialização, né? Os caras não botam a cor nele, quer dizer, eles não dizem que o cara é negro, mas também não apontam a branquitude dele. Apesar de que eu acho que para ele também isso não era questão, porque nesses textos que ele se defende da questão racial, ele trabalha de uma forma muito tranquila. Ele diz: “Não, eu sei que não sou branco”, ele diz isso com todas as letras, ele fala isso com toda clareza e é interessante porque essas trajetórias nos ajudam a pensar essa coisa da racialização, que é como a Wlamyra Albuquerque diz, que esse trato cotidiano da questão racial, de como é que as pessoas se definem, como é que elas são definidas, como é que isso aparece sutilmente nos documentos. É por isso que também eu acabo não… eu não sinto monotonia na pesquisa, porque a pesquisa historiográfica nos últimos tempos ela tem se tornado muito rica, ela tem, bá… está sendo muito bom. Muito bom ser historiador nos últimos tempos. Não, quer dizer, nos últimos tempos não mais, ciências humanas não mais é muito bom assim… (risos)

Leia na próxima semana a parte final da entrevista com Paulo Moreira!

Entrevista com Paulo Roberto Staudt Moreira – parte 2 de 4

Deixe um comentário

Na semana anterior, primeira parte da entrevista, Paulo Moreira vinha nos falando do prazer intelectual ocasionado pela pesquisa em arquivo, prosseguindo falando sobre espaços de sociabilidade entre pesquisadores que estão se perdendo e, em seguida, sobre o impacto dos processos criminais como fonte sobre sua geração de historiadores.

logo apers entrevista

Também uma outra coisa que deve ser destacada, que é geracional, é de que nesse momento na década de 1980, existe, talvez, um documento que esteja sendo salientado como foco principal, onde a gente pode encontrar essa experiência humana na história, que são os processos criminais, os documentos judiciários. O Arquivo Público conservou aqui para a gente. Então, esses pesquisadores todos, é interessante que cada um deles, com a temática diferente, eles estavam indo para uma mesma fonte e estavam encontrando nessa fonte não uma fonte monolítica, porque o documento judiciário não é isso, o documento judiciário ele é quase um dossiê, ele é um dossiê, ele é um conjunto de várias fontes que estão ali juntos, vários documentos que são costurados juntos e no final se coloca uma capinha. Então, essa coisa de acessar essa realidade histórica e essa experiência humana através dos processos crimes, eu acho que marcou muito essa minha geração, o que eu acho que é muito uma geração marcada pela UNICAMP; de novo Sílvia Lara, Chalhoub ou mesmo o João José Reis e outros caras que estavam pesquisando por aí e estavam tentando entender um pouco essa experiência humana através dos processos judiciários. E eu continuo, é uma coisa que eu não perdi ainda, o prazer de frequentar arquivo, por mim eu continuo com o maior prazer de frequentar arquivo, adoro sentar e vasculhar. Tenho encontrado experiência humana em outras fontes, obviamente, né? Tu pode pesquisar um inventário post-mortem, um testamento, uma fonte policial ou alguma coisa nesse sentido que é muito do olhar que tu vai dar para essa fonte, mas, o prazer eu continuo sentindo do mesmo jeito. Isso para mim é muito bom, acho que isso mantém o tesão que tenho ainda pela pesquisa, porque eu estou sempre inventando coisa nova para pesquisar e eu acho que se tem uma coisa que eu transmito bem é essa paixão pela pesquisa. Quando eu começo a falar as pessoas sentem e veem assim, que para mim é profissão, é político, mas é lúdico também. Para mim, isso tudo está lincado e é indissociável.

Rodrigo:

– Uma coisa que me chama atenção no teu trabalho, justamente é isso, a variedade de temas que despertam teu interesse, é saúde, é infância, é escravidão em áreas de colonização alemã… Então, queria te pedir para falar um pouco sobre qual é a fonte de tanta curiosidade intelectual.

Paulo:

– Eu acho que é uma crítica… Acho que tudo isso navega um pouco numa certa crítica política bem contemporânea, né? Acho que as minhas insatisfações políticas contemporâneas acabam condicionando também a minha visão do passado. E nesse sentido, eu acho que sou um grande privilegiado, num certo sentido. Quando eu trabalhava em arquivo – eu trabalhei 22 anos em arquivo – isso também me dava contato com gerações sempre novas de historiadores, e eu estou ligado há 17 anos a um programa de pós-graduação, durante um período político em que os programas de pós graduação cresceram, então, eu vi esse crescimento e essa estruturação dos programas de pós-graduação. Eu sou, eu fui cria disso como aluno, fiz mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e depois retornei professor de um programa de pós-graduação, durante 17 anos. Então, essa questão da orientação, ela também te mantém atualizado e te rejuvenesce, porque são gerações que vão chegando e que vão, e digo isso com maior a tranquilidade, mais do que você chegar e bancar o orientador e ter resposta para tudo, mas, na verdade, tu se atualiza com as orientações. 2019.07.24 PauloPorque os caras trazem novas demandas. Agora, por exemplo, eu tenho orientado muitas historiadoras ligadas a gênero, historiadoras feministas e tal, e isso tem me obrigado a atualizar, me obrigado a ler historiografias que não estava… eu sou obrigado a sair da minha zona de conforto. É um “problema” porque tu tem que estar toda hora se sentindo um pouco desconfortável, mas, por outro lado, tu se atualiza e tu te sente sempre provocado. Então, eu acho que nunca me senti num certo fim de carreira historiográfico, porque parece que sempre novas temáticas têm me provocado e eu acho que muito por essas duas coisas, uma questão de orientação, que eu tenho que me atualizar e outra por questões contemporâneas. Por exemplo, os trabalhos que fiz com a presença negra em São Leopoldo, isso para mim foi, como professor de universidade localizada no Vale dos Sinos, em São Leopoldo, eu percebia isso, ou seja, é uma região marcada pela imigração alemã, pela imigração europeia, um local que tu tem um clube negro, tu tem o clube negro em São Leopoldo, tem o Cruzeirinho em Novo Hamburgo que pertencia a São Leopoldo, tu tem uma presença negra muito grande, desde os tempos da própria instalação da colônia alemã, tem a Feitoria do Linho Cânhamo, tem uma presença escravizada, tu tem uma presença negra escravizada, mas também livre e forra, muito grande durante todo esse período, os trabalhadores dos curtumes daquela região que vão dar origem a indústria calçadista mais contemporânea, eram basicamente trabalhadores negros e essa população era praticamente invisibilizada. Então, se a gente tem uma invisibilidade da população, se a gente tinha uma invisibilidade da população negra muito extensa, em alguns locais essa invisibilidade era ainda maior. Então, trabalhar população negra nessa região com um passado escravista, para mim, politicamente, foi muito interessante. Porque esse livro que eu lancei com o Miqueias, que é sobre a presença negra escravizada em São Leopoldo, talvez tenha sido o livro que eu mais apresentei por aí, porque a editora Óikos fez questão de entrar em contato com as prefeituras municipais do Vale dos Sinos, então a gente saiu dando curso para os professores, palestras e tal, falando disso, falando para os professores que sentiam necessidade disso, eles não tinham muito material para a sala de aula. E eu acho que esses temas todos vão se desdobrando, essa questão da presença escravizada em zonas de imigração foi um pouco essa questão. No início quando eu fui para o mestrado, eu entrei para trabalhar com escravidão, meu projeto de entrada na UFRGS foi sobre escravidão, mas quando comecei a trabalhar com processos crimes eu comecei a me encantar muito pelos processos crimes, com as experiências populares e eu estava muito thompsoniano, eu nunca deixei de ser thompsoniano, eu sou muito conservador, assim, (risos) e aí eu comecei a me encantar muito por essas coisas das experiências populares. Então, o processo-crime me levou muito para isso, porque eu sou muito influenciável, as fontes me levam… É muito aquela coisa da dialética do conhecimento histórico do Thompson, eu não tenho essa de entrar com a caixinha pronta em arquivo, a minha própria dialética do conhecimento, as próprias fontes, elas vão bagunçando o meu esquema e aí, no mestrado, eu acabei trabalhando uma questão mais de populares, que é um troço que eu gostei muito de fazer. Eu mesmo tenho várias críticas ao meu trabalho de mestrado, mas eu gostei de fazer, me deu muito prazer em trabalhar com isso, de pensar Porto Alegre através de uma perspectiva “de baixo”, pensar essas questões. E aí depois que eu terminei o mestrado, em 1992 o Arquivo teve um concurso público, isso modificou muito as instituições também, porque o último grupo que entrou nas instituições tinha sido na década de 1970 e aí em 1992 nós temos o ingresso de um monte de gente. O Arquivo Público muda muito, né? E a partir de 1992 que eu entrei no Arquivo Histórico e aqui nós tivemos vários arquivistas no Arquivo Público, nesse hiato entre mestrado e doutorado eu percebi que a historiografia começou a bombar uma certa fonte que eu não tinha nunca olhado, que eram as cartas de alforria. Eu fiquei muito curioso de pesquisar essas cartas de alforria e aí, sem ter entrado ainda no doutorado e já comprando um computador, eu vinha aqui para o Arquivo quando tinha tempo livre e comecei a fichar as cartas de alforria cartoriais, foi quando eu comecei a preparar o material para aquilo que eu achava que ia ser o meu doutorado. Aquele era um momento que o Arquivo Público estava começando a mudar, porque quando eu pesquisava aqui no Arquivo Público lá atrás, tinha uma senhora que se aposentou e eu não lembro o nome dela, me lembro que era assim: a gente era atendido por essa senhora, pelo Jorge e pelo Zé Carlos, que eram os caras que nos atendiam ali. E não tinha instrumento de pesquisa, então a gente chegava aqui e tinha uns fichários antigos, mas eram uns fichários que remetiam para os documentos individuais, não para conjuntos documentais. Então me lembro quando eu cheguei aqui e dizia “Eu quero os processos criminais de Porto Alegre de 1850” e a senhora essa que trabalhou aqui, ela dizia para os guris “Subam aqui, estante tal, eles estão ali” e aí eles traziam um maço e a gente ia… “Bom, então esse aqui é o maço 58 que é de tal ano”, “então eu terminei, me dá o 59”… A gente ia pesquisando desse jeito, então a gente ia pesquisando esse tipo de coisa. Hoje em dia tu vê, o Arquivo Público tem os instrumentos de pesquisa, o grosso do acervo ele está organizado e catalogado, o Arquivo não é um arquivo morto, então a todo momento estão entrando fontes novas e refinando, hoje a gente tem um site onde tu pode fazer a pesquisa individual, a gente tem os catálogos maravilhosos. Quando eu comecei então a pesquisar, quando eu saí do mestrado, comecei a pesquisar as cartas de alforria que era algo que começou a me atiçar muito a curiosidade. Aí eu tive outras experiências, não eram só aquelas experiências dos processos judiciários, mas eram outras experiências que remetiam a outras coisas que estavam presentes também nos processos judiciários, mas que nas cartas de alforria eu acho que estavam mais, que eu via mais, que era, por exemplo, a questão familiar, a questão de um escravizado ser alforriado por grana da madrinha, ou por grana da mãe, ou por grana do pai. Então, tu percebia um certo esforço coletivo por trás daquilo, um esforço coletivo e político ainda dentro do período da escravidão, então isso me remetia a coisas muito legais. Aí então, as cartas de alforria acabaram me ajudando nesse sentido, assim, que foi quando eu fui para o doutorado e fiz um trabalho sobre a questão das alforrias em Porto Alegre nesse período. E esse trabalho das alforrias acabou crescendo depois, que é o livro que vem depois. Porque eu terminei meu doutorado, defendi meu doutorado, orientado pela Pesavento, meu mestrado foi pela Helga, aí eu fui para a Pesavento porque a Sandra estava passando de fase, assim, ela estava saindo do marxismo gramsciano dela, ela estava numa fase que estava namorando os neomarxistas ingleses e ela estava indo para uma nova história cultural, e aí eu meio que fiquei no meio termo do caminho dela; eu fiquei nos neomarxistas, nessa coisa da experiência social, namorei um pouquinho com história cultural, tem gente que fala que eu faço uma história muito sociocultural, que a história cultural acabou me dando uma sensibilidade nesse sentido; o Rodrigo [Weimer] tem a mesma sensibilidade, mas pela via da antropologia, eu acho, então, para mim, foi um pouco da via da história cultural. E depois de eu ter defendido a tese, eu fui convidado pelo Frei Rovílio, Frei Rovílio Costa, que é meu conhecido já do Arquivo Histórico, o Frei Rovílio me convidou para fazer uma palestra na feira do livro em São Leopoldo, que era justamente para dar uma mexida nessa questão da escravidão e tal. E eu fiz essa palestra e o Frei Rovílio depois me perguntou duas coisas. Ele perguntou: “Vamos publicar tua tese? Eu publico ela em livro pela EST” e eu digo “Tá, tudo bem”. A gente não tem canais de financiamento de livro, então quando a gente tem condições de colocar na rua… e aí ele disse assim: “E outra coisa, será que a gente não podia ampliar essa tua pesquisa? Será que tu não podia pensar essa pesquisa das alforrias de uma forma maior, pensando Porto Alegre, mas pegando um período meio completo das cartas de alforria cartoriais?” Daí foi que a gente começou a fazer esse trabalho. A gente conversou com o pessoal aqui do Arquivo Público que estava interessado em começar a fazer isso, em pensar essas ideias. Era um projeto que unia EST e Arquivo Público num primeiro momento e foi legal, porque o pessoal do Arquivo Público inclusive nos liberou documentos que estavam fora de acesso, alguns livros de cartório que estavam fora de acesso e tal, para mim e para a Tatiane Tassoni. A gente conseguiu pegar esses livros para fazer o levantamento das cartas de alforria, então a gente pegou do século XVIII até 1888. Isso nos possibilitou fazer, pelo menos de Porto Alegre, depois o Arquivo Público completou esse projeto fazendo as cartas de alforria do interior e por isso agente tem os catálogos aqui no Arquivo Público, que são as cartas de alforria do interior, mas não tem catálogo de Porto Alegre, porque esse projeto que a gente fez era para fazer parte desse projeto.

Clarissa Alves:

– Era, mas não foi?

Paulo:

– Eu não sei. Não sei direito como é que foi. Eu sei que deu algum desentendimento e acabou não rolando, assim, acabou a EST lançando o livro das alforrias, meu e da Tati [Tatiane Tassoni], e não ficou fazendo parte dos catálogos, mas no final das contas acho que… Quer dizer, foi uma experiência genial, foi uma experiência muito boa, sei lá, foi uma experiência muito legal de trabalhar com essa fonte que eu não conhecia.

Aguarde a terceira parte da entrevista com Paulo Moreira, na próxima semana!

Entrevista com Paulo Roberto Staudt Moreira – parte 1 de 4

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Paulo Roberto Staudt Moreira é professor de História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e bolsista de produtividade em pesquisa 2 do CNPq. Graduou-se em História na Unisinos em 1989, e defendeu mestrado e doutorado na UFRGS em 1993 e 2001, respectivamente. É autor de diversos livros e artigos científicos. Dentre eles, destacam-se sua tese de doutorado (“Os cativos e os homens de bem”, EST, 2003), a dissertação de mestrado (“Entre o deboche e a rapina”, Armazém Digital, 2009), além de “Que com seu trabalho nos sustenta” (EST, 2007, com Tatiana Tassoni), “Histórias de escravos e senhores em uma região de imigração europeia” (Óikos, 2014, com Miquéias H. Mügge) e “Comunidade Negra do Morro Alto: Historicidade, Identidade e Territorialidade” (UFRGS, 2004, com Daisy Barcellos, Miriam Chagas, Mariana Fernandes, Nina S. Fujimoto, Cíntia Müller, Marcelo Vianna e Rodrigo Weimer). Por seu papel na historiografia do Rio Grande do Sul e pelo destaque na pesquisa no Arquivo Público, decidimos realizar com Paulo Moreira uma entrevista mais extensa. Diferente das demais entrevistas, nesta Rodrigo de Azevedo Weimer contou com a colaboração de Clarissa Sommer Alves para a formulação das perguntas.

Rodrigo Weimer:

– Paulo, como você vê sua inserção no campo da história da escravidão e do pós-Abolição?

Paulo Moreira:

– Como eu vejo? Eu acho que são temas que de certa forma grudaram em mim, assim, meio sem eu ter pensado muito a respeito, pelo menos não no início. Eu comecei a pesquisar sobre isso ainda na graduação, foi lá no século passado na década de 1980, na época que eu fazia ainda a graduação na UNISINOS e aí eu tinha aulas com a professora Helga Piccolo. A Helga na época dava aula na UFRGS e na UNISINOS e aí eu me apaixonei pelas aulas dela, pelas aulas expositivas dela. E, também, hoje em dia a gente naturalizou muito essa coisa de professor pesquisador, né? Mas durante a minha graduação não era, assim, “normal” que os professores fossem pesquisadores, principalmente pesquisadores de frequência a arquivo. A gente não tinha muito… Não era tão frequente que os 2019.07.24 Pauloprofessores levassem para sala de aula a experiência de ter frequentado o arquivo ou qualquer coisa assim. Aí então as aulas da Helga tinham muito esse sentido, ela era uma professora que não só gostava muito de história do Brasil, como ela frequentava arquivo. Se a gente pegar a produção da Helga e comparar com produções que vieram depois com o boom da pós-graduação, a gente até acha que a Helga não era, assim, uma frequentadora tão assídua de arquivos como a gente vai ter depois uma certa geração bem mais empirista. Mas a Helga, ela já trazia isto, essa coisa do prazer de frequentar arquivo, de viajar para frequentar o Arquivo Nacional, de conhecer os arquivos, de falar do Arquivo Público, de falar do Arquivo Histórico e então ela passava isso muito. E eu me lembro que a Helga fez uma disciplina uma vez na graduação e ela pediu que essa disciplina tivesse documentos, que ela fosse alicerçada em fontes primárias e aí então pela primeira vez eu entrei em um arquivo, que foi o Hipólito da Costa para pesquisar jornais. E aí comecei a pesquisar jornais, fiz esse trabalho com a Helga e já aí, é interessante, que eu já comecei a pesquisar escravidão. E eu acho que eu comecei a pesquisar escravidão e me inseri nesse campo, primeiro da escravidão e o pós abolição veio depois. E eu me inseri porque é… Primeiro que, durante as aulas da Helga, a Helga falava muito de que o campo historiográfico da escravidão no Rio Grande do Sul ainda era muito… era um vazio historiográfico, digamos assim, e tu tinha pouquíssima gente investindo nisso ou que já tinha investido. E ela estava absolutamente certa, né? Se a gente pegar aquela época, estou falando da década de 1980 do século passado, né… tu tem lá o Dante de Laytano na década de 1930, aí depois tu tem o Fernando Henrique Cardoso no final da de 1950 e início de 1960, e aí depois tu tem os trabalhos do Maestri dentro de um campo mais acadêmico e ainda era muito pouco, assim, pesquisa realmente de arquivo e tal. E por outro lado, eu acho que a Helga também, ela estava se preparando para um certo “vôo” que foi para mim muito importante, de que estava se aproximando a comemoração de cem anos da abolição, 1988. E a Helga então organizou, saiu da sua área de conforto e ela organizou um projeto de pesquisa, entre vários no país todo que estavam acontecendo, que era de… na época se falava muito da transição da mão de obra escravizada para mão de obra livre e a Helga pensou em fazer isso com um projeto de pesquisa que pensava quatro locus regionais, ela pensava Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre e São Leopoldo, são as quatro cidades que ela elegeu. Porto Alegre porque era a capital administrativa, de uma população escravizada bem grande; Rio Grande por ser o nosso porto atlântico, então também tinha uma população grande escravizada e também um lastro de africanidade bem grande; Pelotas por ser charqueada e ter uma proporção demográfica até de mais população escravizada do que livre em vários momentos; e São Leopoldo talvez tenha sido uma das melhores sacadas da Helga, porque como a Helga ela vem… na verdade ela trabalhava, né? Ela era conhecida por estudos de história política do império e por história de imigração alemã. Ela tinha se tocado de que esse vazio historiográfico no Rio Grande do Sul sobre escravidão no geral, era, na verdade, em áreas de imigração europeia, maior ainda. Eu acho que a Helga foi a primeira pessoa talvez que tenha começado a pesquisar os inventários aqui do Arquivo Público, os inventários post-mortem de São Leopoldo, e viu presença escravizada. Ela não aprofundou muito isso, ela fez esse projeto, produziu um caderno de história na UFRGS, alguma coisa nesse sentido, mas ela, pelo menos, fez esse projeto e foi quando eu me inseri como bolsista. Então por um lado, eu acho que fui incentivado por esse projeto da Helga, pela comemoração do centenário de 1988, e também por esse vazio historiográfico que tinha sobre a escravidão no Rio Grande do Sul, então me pareceu que era uma boa. E politicamente, eu acho que me… Também não dá para a gente esquecer que me constituí um pouco como historiador, como pesquisador no período de redemocratização, então a gente estava vivendo um momento de emergência de uma série de discussões, estávamos vivendo um momento de pressão de movimentos sociais, de movimento negro e tu tinha uma pressão para que as universidades se voltassem para isso e discutindo isso, discutisse o racismo atual. E aí então, eu acho que comecei a entrar dentro dessa nessa onda, de trabalhar escravidão. Aí que eu me constituí, eu acho, um pouco como historiador da escravidão e um pesquisador de arquivo. Eu me identifico muito com esse perfil, assim, eu sou um cara muito empírico. Para mim a frequência em arquivo, frequência aqui no Arquivo Público, para mim tem um sentido profissional, eu sou um pesquisador profissional, me sinto assim, profissional. Tem um sentido político: eu acho que frequentar arquivo, fazer pesquisas históricas de temas, que são esses que a gente pesquisa, escravidão, pós abolição, história da presença negra e da própria constituição do racismo e essas coisas todas, eu acho que tem um sentido também político que eu não consigo retirar. E, para mim, pela coisa lúdica, pesquisar em arquivo é lúdico, arquivo é o “lugar nenhum”, onde eu fico e me desligo das políticas acadêmicas, dos papos de corredor, “facebooks” da vida e consigo voltar para o século XIX e início do XX. Então, para mim, tem isso: para mim, frequentar arquivo e ser um pesquisador de arquivo tem o lado profissional, político e lúdico, então não tem como desvirtuar. Acho que não te respondi nada, assim, né? (risos).

Rodrigo:

– Respondeu várias coisas, eu inclusive vou mudar um pouquinho a ordem das perguntas… Na apresentação aos “Os cativos e os homens de bem”, a Sandra Pesavento, que foi a sua orientadora, faz a brincadeira de “que tu atravessa o espelho e quando tu desaparece, tu vai para o século XIX”. Então, o que a gente queria te perguntar é: se essa metáfora faz sentido para você e se o arquivo tem esse sabor, que a Arlette Farge fala?

Paulo:

– Para mim tem todo o sentido. Para mim, quando eu li o livro da Arlette Farge, eu digo: “Bá, eu gostaria muito de sentar e tomar um vinho com ela ou um café e falar da experiência de arquivo”. Para mim, a frequência no arquivo é uma experiência de prazer, de sentidos mesmo. Os meus sentidos são alertados quando eu entro num arquivo, eu gosto do prazer, assim, de sentar na mesa e tal. Tanto que é uma coisa interessante isso, quando eu comecei a pesquisar aqui no Arquivo Público, os arquivos em geral, mas, pensando no Arquivo Público e minha experiência aqui, a gente… é interessante explicar isso para os alunos hoje em dia, que não tinha computador, não tinha máquina digital, então eram muitas horas “bunda-trabalho”. A gente se apega em copiar, a gente era escriba, né? A gente lê o “Nome da Rosa” e a gente se identificava com aqueles caras fazendo iluminuras, não dos documentos em si, mas copiando os documentos. Eu não quero parecer um velho nostálgico, mas eu acho que isso, de certa forma, a gente perdeu. É o ônus e o bônus da tecnologia na pesquisa, né? Bom, eu não vou querer dizer que fotografia, máquina fotográfica digital, não é uma maravilha, não vou querer dizer que o computador não é um troço fantástico, mas quando eu comecei a pesquisar aqui no Arquivo Público e a sala de pesquisa era lá no fundo, eu adorava quando eu chegava na sala de pesquisa, adorava que a mesinha onde eu sentava estava sempre desocupada, era uma mesa que dava para o pátio com aquelas janelas grandes e dava para ficar olhando para o pátio. Como não tinha máquina digital, não tinha computador, a gente ficava mais tempo aqui. Então, as vezes, eu fico pensando que esse é um espaço de sociabilidade que a gente acabou perdendo. Porque eu me lembro, por exemplo, na década de 1980, quando eu entrei no mestrado, um pouquinho antes até, quando eu comecei a frequentar aqui o Arquivo Público, eu frequentava a sala de pesquisa e tinha o Roger Kittleson que é um norte-americano e pesquisava populares aqui, tinha a Sílvia Arend que pesquisava famílias populares, tinha a Rita Gattiboni trabalhando escravidão em Rio Grande e tinha o Jorge Euzébio Assunção que pesquisava também escravidão em Pelotas. O Jorge e a Rita eram orientandos do Maestri na PUC, a Sílvia era orientada pela Sandra Pesavento no mestrado da UFRGS, era minha colega de mestrado, e o Roger veio dos Estados Unidos para pesquisar o Rio Grande do Sul e os populares. E era muito legal essa coisa do entrosamento, a gente trocar experiência do sabor do documento e na apreciação de cada um sobre os documentos. Isso é uma coisa que a gente não tem muito, né? Porque a frequência no arquivo é muito mais rápida, a gente vem aqui, fotografa o documento. Então, acho que a gente perdeu um pouco isso. Eu gosto ainda de sentar na sala de pesquisa e fazer o fichamento e as vezes acham, dizem que eu sou muito burro por fazer isso, mas eu digo assim: eu tenho muita coisa para fazer fora daqui e se eu tirar foto e tiver que trabalhar com essas fotos em casa, fazer o fichamento em casa as vezes demora muito. Então, acabo fazendo isso aqui. Então, eu acho que o arquivo como espaço de sociabilidade, principalmente para a minha geração, que era uma geração que ficava manhã e tarde, a gente almoçava juntos aqui no centro, então, a gente ficava trocando um pouco isso. E era legal, porque se a gente pensar direito, assim, eram escolas diferentes de apreciação dos documentos e quando eu digo de apreciação do documento eram também de escolas historiográficas diferentes. A gente tinha o Roger Kittelson e Sílvia, – a Silvinha, que hoje é professora em Santa Catarina – que trabalhavam mais na onda de uma renovação historiográfica, trabalhar populares e tal. Porque essa é uma época que a UNICAMP já estava, não só nos servindo com os trabalhos do Chalhoub e da Sílvia Lara, como em função da redemocratização, a gente estava tendo acesso aos neomarxistas ingleses, então a gente estava lendo Thompson, a gente tava relendo Hobsbawm, a gente estava pensando nessa coisa da experiência social e isso faz com que a gente olhe as fontes de forma diferenciada. Então eu sinto muito esse prazer, esse sabor de frequentar arquivo, eu tenho um gosto muito grande de sentar, usufruir, de curtir o documento, de pensar o documento, esse gosto do arquivo, para mim, ele é fantástico. Essa coisa da Sandra é pouco uma puxada de orelha, assim, porque ela achava que as vezes eu não dava muita atenção para ela, quando ela me mandava os recados, mas ela sabia também que se eu não estava ali, eu estava dentro de arquivo. É um lugar que eu me sinto muito bem, me sinto muito seguro e quando eu digo “lugar nenhum” é como se… é um momento mesmo que parece de interrupção da correria, de interrupção de tempo, é meio maluco dizer isso, eu sei, mas, é uma coisa que eu sinto bem. O arquivo parece que é um pouco… acho que é meio lugar-comum dizer que é uma máquina do tempo, mas é um hiato no tempo, é uma percepção minha que tenho, assim, de que o tempo passa mais lento – talvez seja isso. As vezes, a gente está tão na correria de relatórios, da superprodução acadêmica que a gente está envolvido, das orientações, das aulas, que é muito legal se dar esse tempo. O que também é uma coisa, para mim, é… às vezes as pessoas dizem “Como tu consegue ir para arquivo?”; mas é um prazer que eu me dou indo para arquivo, eu tenho prazer de ir para arquivo. Porque, para mim, arquivo, também a documentação que eu acesso, ela é acesso a experiências humanas do passado. Eu sou de uma geração que humanizou essas experiências, que olhou esses documentos de uma forma que não era só de, sei lá… Acho que a gente vinha de uma história muito rígida em termos de comportamento humano e isso marca muito a historiografia. Quando a gente pensa o próprio Maestri, que foi muito importante, que é muito importante historiograficamente, se pensa muito, talvez, de uma forma muito fechada, muito monolítica a própria experiência humana. Então, eu acho que a minha geração, ela se permitiu humanizar os personagens que a gente encontra na documentação privada e na documentação pública, e com isso eu acho que se tornou mais interessante acessar os documentos. A gente não está procurando essa heroicização mais absoluta, né? A gente não está mais tão interessado em pegar heróis absolutos. As próprias fraquezas que a gente encontra, como o pessoal diz, muitas vezes os nossos personagens agem pelo estoco, eles estão agindo pela necessidade e isso, eu acho que essa fluidez no comportamento, nos permite olhar com muito mais sabor o documento, curtir muito melhor o documento, entender muito melhor os nossos personagens, isso dá uma sensibilidade com relação ao arquivo, que eu acho muito legal. E nesses momentos, assim, que a gente tinha de troca, eu, o Roger, o Euzébio, a Rita, a Silvinha, era muito interessante que cada um via diferente os documentos e trocávamos muito e isso tudo foi muito bacana.

Aguarde a continuação da entrevista com Paulo Moreira na próxima semana!

Entrevista com Luís Augusto Ebling Farinatti – parte II

Deixe um comentário

logo apers entrevista

No trecho da entrevista publicado na semana passada, Luís Augusto Farinatti falava sobre alguns empregos não tão usuais de fontes primárias, a exemplo das escrituras. Da mesma forma, ele seguiu, relatando o uso serial de processos criminais:

Outra questão que eu acho importante no teu trabalho, me chama muito a atenção, o uso serial e quantitativo dos processos criminais que geralmente o uso que se faz é qualitativo, né?

É, eu para estudar os peões, por exemplo, foi bem importante para mim. Porque a gente não tem censo, mapas de população como tem para a capitania de São Paulo, por exemplo, ou censos detalhados como o pessoal do Rio da Prata tem em que tu tens a profissão e a idade. E eu precisava construir uma caracterização social, um perfil social, que alguns grupos como os dos peões que é muito fugidio. Realmente, se tem menos informações sobre eles do que trabalhadores escravizados, por exemplo, por conta do próprio sistema escravista, já que eles não eram inventariados e considerados propriedade, como infelizmente os trabalhadores escravizados eram. E então os testemunhos, a caracterização, a qualificação das testemunhas e dos réus nos processos criminais me dava essa oportunidade, porque ali apareciam conjugadas informações como nome, idade, origem, a naturalidade, o estado civil e a profissão. Então eu podia verificar, por exemplo, que os peões eram em maioria jovens e maioria solteiros, muitos deles não eram considerados brancos porque para quem construiu a fonte eram considerados pardos ou índios, ou chamados de pretos na fonte. E também pude observar que era um perfil diverso dos pequenos produtores, que eram chamados de criadores ou lavradores nas fontes e que já eram casados, com mais de trinta anos. Então a minha conclusão um pouco foi que, pelo menos, parte desses peões não eram homens soltos, eles estavam inseridos dentro de um ciclo de vida familiar, porque ou morriam todos aos 30 anos ou alguns deles se tornavam pequenos produtores. Então a peonagem fazia parte para uma parte dos peões de uma diversificação da estratégia produtiva dos pequenos lavradores, mas eu só pude ver isso utilizando de forma serial os processos criminais.

Bom, queria te pedir para falar um pouco sobre esse teu projeto paralelo literário, sobre como isso incide sobre a tua escrita historiográfica.

2019.07.03 FarinattiEu na verdade, apesar de só ter publicado literatura de ficção agora, eu escrevo desde sempre e antes de ser historiador eu já escrevia literatura. Eu escrevi um livro de contos e não publiquei por razões diversas, muito por culpa minha. Depois veio o doutorado em história e uma necessidade de uma especialização da leitura, inevitável. Eu fiquei com um interregno literário dos quatro anos do doutorado. E depois voltei a fazer as duas atividades paralelamente, até que agora publiquei o primeiro livro de literatura. Eu te confesso que não é muito simples não, assim, porque são duas formas de raciocinar que para mim não são semelhantes. Elas tem semelhanças, mas tem suas especificidades. Eu admiro muito historiadores que conseguem ser muito literários na sua forma de escrita e eu acho que fico a dever muito. O que acontece é o contrário, eu tive dificuldade de construir qualquer projeto literário que envolvesse um passado que alguém vivo hoje não pudesse lembrar, oitenta anos para trás. Porque eu sempre tive medo que o historiador amarrasse o escritor, porque é preciso uma certa fluidez das ideias para escrever. E eu às vezes ficava pensando que eu ia escrever uma coisa que se passasse em 1900 e o historiador ia dizer “não, esse conceito não era usual, isso não existia”, mas, eu hoje estou com um projeto literário que é escrever uma peça literária, talvez uma novela ou só contos, não sei, nesse período. Então é um desafio para mim, eu estou integrando essas duas áreas, vou ver o que vai acontecer. Tá numa fase bem experimental, porque tu bem sabes, como historiador, que esses documentos do passado nos levam a enredos muito interessantes para ser base de possibilidades literárias, então, acho que vou tentar essa aventura.

Mas eu acho, se me permite te dizer, que o teu trabalho, os teus títulos, teus subtítulos, teus capítulos, teus subcapítulos têm nomes bem sonoros. Eu percebo uma presença literária que não percebo na maioria dos historiadores…

Talvez. É, os títulos eu gosto, início de capítulos principalmente, o início do livro. Eu tenho um amigo que diz que o livro promete ser muito mais interessante, o livro de história, da tese, “Confins Meridionais”, promete ser mais literário do que é porque ele inicia de uma forma literária e depois são muitas tabelas e gráficos. Mas, talvez pela metodologia que eu usei muito tempo, né? A metodologia serial, ela é mais descritivo-analítica do que narrativa, ainda que sempre será narrativa, é claro. Mas, sem dúvida, agora que você falou talvez interfira mais do que eu queira admitir.

Eu acho que sim. Já que tu falaste desse trabalho mais recente, eu queria te pedir para falar um pouco sobre esse êxodo rural historiográfico, sobre teus projetos mais recentes tanto do ponto de vista metodológico, como a questão das fontes. Tu estás voltando para o Arquivo Público, como é que o Arquivo entra nisso?

Bom, eu me interesso muito por uma combinação de história serial com análise micro-histórica, acho que ela é possível, tento praticar em termos metodológicos. E eu trabalhei vinte anos na sociedade rural da fronteira sul do Brasil. Alain Corbin em uma entrevista, historiador francês, disse que a gente tem que mudar de tema a cada dez anos para se apaixonar de novo.i Eu não sei se é exatamente isso, mas eu sempre tive uma interrogação muito forte sobre o mundo urbano, apesar de estudar o mundo rural. O mundo urbano sempre foi algo sobre o que eu li em literatura, antropologia, li urbanismo, sempre foi algo que esteve presente nas minhas indagações sobre o mundo. Agora eu resolvi então levar os meus instrumentos de historiador para uma análise do mundo urbano. Para me aproximar disso, eu estou com um projeto utilizando uma metodologia que eu conheço. Já que eu estou indo para um tema novo, achei prudente me aproximar da cidade a partir de uma metodologia que eu conheço. Estou trabalhando com uma história socioeconômica de Porto Alegre, na segunda metade do século XIX. Porto Alegre tem uma historiografia riquíssima, interessantíssima, sobretudo no que se trabalha com a cidade, com urbanidade e com a ampliação da pobreza, do controle social sobre a pobreza, da criminalização da pobreza, há uma tradição de estudos sobre isso. Muitos bons estudos sobre o pós-abolição também em Porto Alegre, sobre escravidão urbana em Porto Alegre. Mas, eu senti a falta de estudo mais estruturais sobre Porto Alegre: passou a moda dos estudos estruturais e Porto Alegre passou em silêncio. A gente tem sobre Alegrete, tem sobre Santa Maria, tem sobre Pelotas e não tem sobre Porto Alegre. Ela está conectada a isso que se chamou a Primeira globalização ou a Segunda revolução industrial… E como uma capital periférica se insere nesse mundo e como os estímulos econômicos e estruturais são socialmente metabolizados por uma configuração social que é sempre específica? Eu formularia assim a minha pergunta. Para me aproximar começo a trabalhar com os inventários post mortem, num trabalho que é metodologicamente nada inovador, mas que eu possa fazer comparações, é um projeto para dois ou três anos, para eu tomar conhecimento da cidade e aí fazer um projeto mais vertical que ainda vou decidir qual é. As minhas interrogações passam por espaço urbano e configuração do espaço social e como esse espaço social pode ser descontínuo, pode ser heterogêneo de cidade para cidade. Apesar de eu usar uma historiografia ligada lá à segunda fase dos Annales na metodologia, eu tenho horizontes fortes, por exemplo, de um historiador italiano Maurizio Gribaudi, de enxergar a cidade não apenas como espaço urbano, mas como um espaço social que é organizado de formas muito diversas, cujas combinações dessas formas e suas dinâmicas vão formando o “urbano”. É nesse sentido que eu quero estudar Porto Alegre e os inventários Post mortem são a primeira coleção que eu investigo estão aqui no Arquivo Público. Voltei e estou bem feliz de novo de estar aqui.

Tá certo! A gente está bem feliz também de te receber aqui. Agradeço pela muito boa entrevista, valeu.

Obrigado.

i A entrevista referida encontra-se no seguinte link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882005000100002

APERS Entrevista: Luís Augusto Ebling Farinatti – Parte I

Deixe um comentário

logo apers entrevista

Luís Augusto Ebling Farinatti é professor na Universidade Federal de Santa Maria. Graduou-se em Direito (1993) e História (1997) na Universidade Federal de Santa Maria, tendo defendido seu mestrado em 1999 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e seu doutorado em 2007 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou sua tese “Confins Meridionais” (Editora UFSM, 2010) e um livro de contos, “Verão no fim do mundo” (Modelo de nuvem, 2018).

Queria te agradecer por participar desta entrevista e te pedir para falar um pouco sobre a tua trajetória de pesquisa e o papel das fontes do Arquivo público nessa trajetória.

Bom, eu… o Arquivo Público teve uma função iniciática, eu diria na minha trajetória, porque quando eu fiz a graduação, na universidade onde eu estudei ainda não havia uma grande tradição de Iniciação Científica. Eram alguns grupos, mas não era muito difundido e eu vim até o Arquivo Público sem conhecer muito, ainda estava na graduação, as fontes e o que tinha em cada arquivo, em Porto Alegre. O primeiro arquivo que eu bati para conhecer, para explorar, foi aqui. Eu lembro que a servidora do Arquivo me disse: “São vinte milhões de documentos, rapaz. O que tu quer, afinal de contas, me explica?” E bateu assim… Eu acabei fazendo o meu mestrado com história agrária do centro do Rio Grande do Sul, no século XIX e aí eu utilizei os registros paroquiais de terra, que estão aqui, e os inventários post mortem que também estão aqui. Também utilizei alguns processos criminais, foram a base da minha pesquisa. Depois, no doutorado, em que eu estudei a história social e econômica do mundo rural das regiões de pecuária no século XIX, região de fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, as fontes centrais também foram os inventários post mortem e essa coleção como sendo de processos judiciais estão no Arquivo Público. Então é o lugar aonde eu mais pesquisei, pesquisei em vários outros lugares também, mas é o lugar onde eu mais pesquisei e considero sim a oportunidade de ter, para um pesquisador do século XIX e pro XVIII também, para quem pesquisa, reunidos num só lugar, vários municípios. E em uma duração de média a longa, é um privilégio enorme, tanto no ponto de vista da conservação das fontes, de uma política de conservação – porque basta uma, não precisa uma por município – quanto da própria viabilidade da pesquisa. Então eu tenho uma relação que também é quase afetiva com o Arquivo Público, porque, sem dúvida, é o lugar aonde eu mais pesquisei e ainda hoje, na minha pesquisa atual, é principalmente aqui no Arquivo Público. Então tenho uma relação muito próxima.

Uma coisa que chama atenção nos seus trabalhos é que quando tu estudas os lavradores pobres, tu trazes a questão da escravidão e a presença dos escravos. Quando tu estudas a elite, tu trazes a presença dos escravos e dos peões. Quer dizer, tu nunca te desvinculas do estudo dos “de baixo”, digamos assim. Como é que tu vês as possibilidades de relações de uma história da elite e uma história desses ditos “de baixo”?

2019.06.26 Farinatti menorEu acho que tem um pouco também da formação, depois no doutorado que eu tive com o meu orientador que é o João Fragoso e dos debates que a gente tinha. Eu nunca consegui enxergar um grupo social segmentado. Ele está inserido em uma sociedade em relação. Eu fiz um doutorado sobre a elite, sobre classes dominantes, elas não existem sem se considerar em relação com o restante da sociedade. Eu ainda sou um historiador que enxerga relações de dominação, de expropriação, ainda que elas não sejam mecânicas nem simples. Então é preciso colocar em relação. A gente coloca o foco sobre uma categoria, recortada por nós, mas ela está em relação com outros, então para mim é inevitável. Aliás, eu vou te dizer que eu estudo a elite para entender a desigualdade social, para entender as formas de estratificação do espaço social, esse é o meu grande tema. E isso não dá para estudar um grupo só, então é uma questão de como ver a sociedade e a sociedade em movimento.

Uma grande contribuição do teu trabalho, eu creio que é a análise dos peões. Queria te pedir para falar um pouco sobre isso, como é que você chegou nessas fontes…

Eu tenho umas influências aí, eu gosto de citar as influências porque a gente não inventa nada do zero não, da Helen Osório que é professora da UFRGS e do Juan Carlos Garavaglia, historiador argentino, falecido em janeiro do ano passado… que foi meu tutor no doutorado sanduíche, na tentativa de ver maior complexidade num mundo social rural do século XIX das regiões de pecuária, no sul da América. Sempre me incomodou a ideia de que os pobres no Rio Grande do Sul do século XIX, mormente nas regiões de pecuárias, eram homens soltos. Garavaglia tinha uma fórmula irônica para isso, ele dizia: “Unos cuantos varones de ambulantes nacidos no se sabe dónde y cómo”. Porque não teria famílias, não haveria nenhuma forma de produção familiar, campesinato, estratégia familiar dos mais pobres, eram quase anômicos e isso me incomodava muito. O Garavaglia conseguiu mostrar para o Prata, a Helen para o século XVIII e eu acabei partindo em busca da grande pecuária no período da grande pecuária do século XIX na fronteira. Me interessou sempre conectar esses peões a seus vínculos sociais e de tentar compreendê-los dentro de estratégias familiares, de grupos próprios e não sozinhos como homens que oscilam entre o crime e a guerra.

Tem alguns levantamentos que tu fazes, que eu acho que são, não digo inéditos nem únicos, mas não são tão usuais assim na historiografia do Rio Grande do Sul, queria te pedir para falar sobre um pouco sobre eles. Primeiro no teu mestrado tu analisa o preço da terra através das escrituras. Pode falar um pouco sobre isso?

Isso. É, tem também trabalhos fora do Brasil, no Brasil não são tantos trabalhos assim e na Argentina tem um bom grupo que trabalha com isso. Mas acho que é um campo ainda muito por explorar e é aí um exemplo de fonte do Arquivo Público que pode ser mais explorado. Eu, no momento, na pesquisa atual, fiz um êxodo rural historiográfico; estou estudando cidade, ainda de uma maneira genérica, mas uma das possibilidades que eu pretendo trabalhar no futuro, e que sugiro que outros trabalhem, por exemplo, são terrenos urbanos, mercado imobiliário urbano, mercado de terrenos urbanos. Isso me interessa muito e as escrituras públicas são fontes fáceis de pesquisar, no sentido de que são acessíveis e boas de trabalhar, eu acho muito interessante e é uma fonte pouco pesquisada, muito pouco pesquisada.

Acompanhe a continuação da entrevista com Luís Augusto Ebling Farinatti na próxima semana!

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte III

Deixe um comentário

No trecho da entrevista publicado na semana anterior, a historiadora Mariana Flores da Cunha Thompson Flores vinha explicando as formas como os sujeitos sociais manejavam o espaço fronteiriço, ensejando o questionamento sobre as fontes de pesquisa empregadas.

Trabalhou só com os processos-crime ou trabalhou também com processos cíveis?

Eu trabalhei com processos cíveis, processos-crime, eu trabalhei bastante com ações ordinárias, com ações possessórias, principalmente na dissertação de mestrado. E essas ações ordinárias foram muito interessantes porque elas na grande maioria trazem cobranças de comércio. Especialmente comerciantes que morrem e na abertura do inventário todo mundo com quem ele mantinha dívidas vai abrir suas ações para saldar essas dívidas, o que era normal. Era normal em um comércio que circula sem moeda e que se reproduz no crédito. E normalmente, muitas vezes essa dívida é saldada no momento da morte, quando se abre inventário. Nessas ações ordinárias tu percebes que tem um volume grande de comerciantes cobrando dívidas. Foi bacana, porque eu fui fazendo uma espécie de mapeamento dessas cobranças de dívidas. Quem cobrava de quem. Qual região do estado cobrava de qual região do estado. E aí de alguma forma tu consegues ver quais são as regiões que mais fornecem mercadorias e quais as que mais compram mercadorias. E por aí eu consegui ainda entender um pouco do alcance desse comércio feito pela fronteira oeste. Sabendo que esse comércio era baseado em grande medida por contrabando. E a gente consegue identificar comerciantes lá de Uruguaiana, lá de Alegrete, vendendo para lugares muito distantes. Lugares que estavam muito mais próximos de Porto Alegre. Muito mais próximos de Pelotas e Rio Grande. No entanto, compravam de Alegrete, compravam de Uruguaiana. Que eram muito mais distantes, mas certamente ofereciam um preço muito mais barato. E só ofereciam mais barato porque a mercadoria entrava por contrabando.

Eu acho interessante que essa documentação tem um grande potencial. E os historiadores geralmente se atêm aos processos criminais, aos inventários, mas se apropriando também das possessórias, das ordinárias, eu acho que o teu trabalho é um exemplo de que pode render muito.

Rende, e tem uma outra coisa que eu tenho feito, fincado pé, também, que é as valências dos processos-crime. Eu comento isso muito com meus alunos. Quando a gente fala, pessoa que pesquisa elite, ah, vai olhar inventário. A pessoa que pesquisa populares, vai pesquisar processos-crime. A pessoa tá pesquisando um determinado contexto ou sujeito. Vai olhar os processos-crime pra fazer a pesquisa mais verticalizada, mais qualitativa. Então, essas máximas, elas estão impregnadas no nosso senso comum de historiador. A ideia de que processo-crime é pra acessar camadas populares e a ideia de que processo-crime é pra pesquisas de cunho mais qualitativo. E eu tenho feito essa reivindicação já há algum tempo. É claro que processo-crime te dá uma visibilidade maior de populares. Mas isso também tem que ser visto com olhos críticos, porque essa afirmação, feita de qualquer maneira, é muito perigosa, porque ela vai endossar que, então, populares cometem mais crimes. Eles não cometem mais crimes. Só que sobre eles recai a criminalização. Sobre eles recai o patrulhamento, que não recai sobre a elite. Então naturalmente eles estão mais representados. Segunda coisa, que processos crime é pra análises de cunho mais qualitativo. É claro que nos processos-crime tu tens pessoas falando. Tu tens o discurso das pessoas, por mais que ele seja, a gente sabe, manipulado, manipulado pelo que o Boris Fausto chama manipuladores técnicos, todas aquelas regras de registro de processos-crime que vão tolhendo a redação e tolhendo muitas vezes recortando, editando, as falas dos depoentes, a gente sabe que apesar de tudo isso a gente tem acesso às falas dessas pessoas. É claro que isso nos dá uma qualidade pra um trabalho mais verticalizado que é diferente de outros processos. Por mais que tenham as manipulações, a gente sabe que o processo tem essa riqueza. Agora, além de tudo isso, o que eu tenho reivindicado muito é que o processo-crime é, os processos-crime são uma janela também muito interessante para se acessar elite. Vejam, os ladrões de gado, quem mais rouba gado nos processos que eu recolhi, são estancieiros. São criadores, assim, criadores pensando assim como médios proprietários, estancieiros como proprietários maiores. Mas são criadores com propriedades, que vão roubar entre vizinhos. Do sujeito da propriedade ao lado. Esses são os que roubam em maior número. O popular rouba uma cabeça de gado pra subsistência. Os que roubam muito gado são os proprietários, os estancieiros. Contrabandista. Quem faz o grande contrabando? O grande comerciante. Então o processo crime é também uma janela pra acessar uma classe média e uma elite também. E a outra coisa, nesse sentido então é que, sim, processos-crime servem para essas análises qualitativas, é claro que servem, não é à toa que a gente tem isso impregnado no nosso senso de historiador. Mas processos crime são fontes que se prestam a análises seriais! Elas respondem aos requisitos básicos. São fontes massivas, homogêneas e reiterativas. A gente consegue fazer análise serial com processo-crime. E eu tenho feito. Se pegar os resultados dos trabalhos… Tu vais ver, tem muita tabela, tem muita quantificação. Ivan Vellasco, que é um historiador de Minas Gerais faz isso brilhantemente! Quantifica processo, mapeia processo, faz georreferenciamento pra trabalhar com processo-crime. Eu tenho insistido muito com isso, com os meus orientandos, com os meus alunos. Processo-crime também pode ser tratado como fonte serial, como fonte quantitativa, portanto!

Então tá certo, Mariana, te agradeço pela entrevista, foi bem bacana.

Notícias relacionadas:

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte I 

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte II 

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte II

Deixe um comentário

No trecho da entrevista publicado na semana passada, a historiadora Mariana Flores da Cunha Thompson Flores vinha falando do papel das fontes do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul em sua trajetória de pesquisa.

Tem uma questão que eu achei bastante importante no teu trabalho, que tu dizes que a fronteira não é apenas um cenário, ela é definidora de lógicas. Ela define o formato, o funcionamento de uma série de coisas, não é espaço físico somente.

 Sim, eu faço essa afirmação, embora, se descontextualizada, ela pode ser mal lida e pode nos empurrar pra uma leitura sobre o espaço de fronteira que já está vencida desde o século XIX, que atribui um determinismo geográfico, um determinismo do meio sobre as pessoas, e não é essa a ideia. A ideia é justamente pensar que a fronteira enquanto espaço territorializado, quer dizer, a fronteira que não é um espaço vazio, é um espaço que só existe porque as pessoas fizeram uso dele, se apropriaram dele, fizeram uso, e construíram as lógicas que aquele espaço permite. Então eu tô fazendo essa ressalva só pra deixar claro que tem… Sim, eu entendo que a fronteira é quase que um agente, eu digo isso, a fronteira não é um cenário, a fronteira é um agente, mas ela é um agente porque as pessoas territorializaram aquele espaço. As pessoas instituíram um limite político, justapondo soberanias, justapondo legislações. Os sujeitos fronteiriços apreenderam essas margens e conseguiram estabelecer essas estratégias em suas vivências através da fronteira. Ao mesmo tempo também isso precisa ser dito com certo cuidado, porque também para não incorrer numa total racionalidade desses agentes nas suas condutas. A minha ideia de racionalidade, enquanto eles se valem e estabelecem estratégias é muito mais numa linha Giovanni Lévi, naquela linha de racionalidade limitada, é racional mas é racional dentro do meu cotidiano, dentro do meu costumeiro, e não porque todos os dias ardilosamente eu defino o que eu vou fazer pra sobreviver. Uma coisa muito mais absorvida, orgânica, do que propriamente refletida… Porque a palavra estratégia ela traz um pouco essa carga.

E essa concepção da estratégia no sentido de uma racionalidade limitada está relacionada ao teu conceito, e do Farinatti, de fronteira manejada?

Esse conceito, ele nasceu aqui, no Arquivo Público.

Conta como foi?

Acho que vale a pena. O que havia da minha parte, quando eu comecei a fazer o mestrado, foi quase uma agonia, uma angústia muito grande. Porque toda oferta que eu tinha de historiografia a respeito do conceito de fronteira, que era uma historiografia tributária dos anos 90, de uma ideia de fronteira plenamente integrada, que os fronteiriços formavam grandes “comunidades do ‘nós’”, quase que se opondo aos seus Estados de origem, e tecendo redes bem articuladas nas regiões, quase que dirimindo o limite político que passava por ali. A própria fronteira. Essa é uma historiografia dos anos 90, que é uma historiografia que teve os seus avanços, porque trouxe o lugar da fronteira pro fronteiriço, pra essas redes, venceu uma historiografia tradicional, que pensava a fronteira como um espaço de barreira, limitador de relações, então essa historiografia dos anos 90 ela foi genial. Avançou imensamente. Rompeu com paradigmas que foram importantes. Só que em alguns momentos ela também forçou um pouco. Ela acabou carregando um pouco na interpretação e tendeu para uma integração plena do espaço fronteiriço. E essa era a historiografia que havia disponível quando eu estava fazendo minhas pesquisas. E quando a gente vai pras fontes, eu não consegui enxergar isso nas minhas fontes. Eu percebia sim, que havia essa fronteira, feita pelo indivíduo, pelo fronteiriço, mas eu percebia ao mesmo tempo o papel do Estado, o Estado não era irrisório, inútil, inoperante. Ele tava ali. Adaptado às redes locais, OK, mas ele estava ali. E eu percebia também que aqueles fronteiriços, por mais que tecessem suas redes sociais, familiares, de trabalho dos dois lados da fronteira, eles nunca deixavam de reconhecer estarem de um ou de outro lado da fronteira. Eles nunca deixaram de reconhecer o seu pertencimento, ainda que não fosse um pertencimento nacional, mas o seu pertencimento territorial diante do outro que vinha do outro lado. Eles pertenciam essas diferenças. E isso não combinava com essa historiografia dos anos 90. E essa angústia foi crescendo em mim. E eu também era nova e não achava que eu podia debater com uma historiografia consolidada. Minha angústia exatamente era esta. O que eu vou fazer? Eu vou mutilar as minhas fontes pra tentar fazer caber em um conceito de fronteira que já existe? E em conversas, isso foi um momento muito bacana, também, do Arquivo, como eu falei no início, a gente fez amizade, a gente saía pra almoçar todos juntos, a gente saía pra tomar café todos juntos, e essas saídas eram pra conversar sobre tudo, mas era muito pra falar sobre as pesquisas de cada um, e foi nessas conversas que eu, o Farinatti e a Márcia Volkmer compartilhamos, todos os três estavam com a mesma angústia. Todos os três estavam… “Pois é, que que a gente vai usar então? Que conceito de fronteira a gente vai usar?” E aí eu acho que a gente foi se encorajando também. Os três se encorajaram para dizer “não, se essa historiografia não serve, a gente talvez não tenha o vigor intelectual pra propor um novo conceito, mas a gente pelo menos vai, diante da munição que a gente tem, debater com essa historiografia, dizer o que serve e o que não serve. E isso foi ganhando corpo, até que se formulou, já na dissertação de mestrado eu apresentei uma primeira formulação, o Farinatti também na tese de doutorado dele, logo depois a gente publicou juntos um capítulo avançando um pouco mais nessa discussão, e aí eu acho que o fechamento foi na minha tese de doutorado, a apresentação assim mais bem acabada do que se pensou quando se propôs repensar esse conceito de fronteira e pensar a partir dessa nova perspectiva que a gente batizou fronteira manejada.

E qual foi o papel da pesquisa empírica com os processos criminais na formulação, na reflexão sobre esse conceito?

Foi tudo, porque toda essa agência dos fronteiriços que eu estou relatando, toda essa percepção que a gente teve do quanto os fronteiriços, desculpe a redundância, percebiam a existência de uma fronteira ali, eles sabiam inclusive onde passava o limite. A linha. Embora não estivesse riscada em lugar nenhum, eles sabiam onde passava o limite. Tudo isso tava, era perceptível nos processos. O Arquivo Público tem, eu trabalhei com alguns processos, nos quais o sujeito que comete uma infração, um delito, imediatamente vai em direção à fronteira. Usando daquele recurso que eu comentei antes, de se colocar livre de quem pode punir, de quem pode prender. Imediatamente ele foge em direção à fronteira. Isso se repete inúmeras vezes nos processos. Eu quantifiquei isso nos diferentes capítulos. Mas em alguns processos eles estão fugindo já sendo perseguidos pela polícia. E eles fogem em direção à fronteira, e quando eles cruzam a fronteira eles param, porque sabem que a partir dali a polícia não pode mais prender e a polícia também sabe. E veja, é um limite imaginário, um limite que não está riscado, eles simplesmente sabem que é por ali… E eles passam a fronteira e param de fugir. Porque a polícia não pode mais prender. Então os processos-crime foram fundamentais na percepção dessa forma como os fronteiriços se portavam na fronteira, como o Estado está presente ali. Como que as leis agem nesse espaço, como os fronteiriços se dão conta disso e manipulam essas leis. Quando eu trabalhei com casos de sedução de escravos e fugas de escravizados pela fronteira que iam em busca da sua liberdade também, porque do outro lado a legislação já havia abolido a escravidão. Também fica muito claro como escravizados vão em busca da sua liberdade cruzando a fronteira e como (isso não fui só eu que fiz, tem inúmeros trabalhos que lidam com esse tema).

Na próxima semana teremos a terceira e última parte da entrevista!

Notícias relacionadas:

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte I 

APERS Entrevista: Mariana Flores da Cunha Thompson Flores – Parte I

Deixe um comentário

Mariana Flores da Cunha Thompson Flores é professora no departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria. Fez sua graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também concluiu seu mestrado (Clique aqui para acessar a dissertação) em 2007. Cursou seu doutorado na Pontifícia Universidade Católica, tendo defendido em 2012. Sua tese (Clique aqui para acessar) recebeu menção honrosa no concurso da Anpuh/RS – 2012-2014. É autora de “Crimes de Fronteira” (EDIPUCRS/Anpuh, 2014).

Mariana, eu queria te pedir pra falar um pouco sobre tua trajetória e sobre o papel das fontes do Arquivo Público nela.

A minha trajetória como pesquisadora começou na iniciação científica, mas sem contato com fontes primárias. Eu trabalhava com o professor Guazzelli com fontes impressas. A minha empreitada de trabalhar com fontes primárias, isso foi aqui no Arquivo Público que começou. Quando eu resolvi fazer o mestrado, eu pensei em pesquisar contrabando, e essa ideia surgiu por que me parecia que a questão do contrabando na historiografia do Rio Grande do Sul era uma daquelas questões calcadas de um largo consenso historiográfico calcado em ausência de pesquisa. Porque todo mundo referia a questão do contrabando no Rio Grande do Sul, mas ninguém se dedicava a pesquisar. E de alguma maneira havia uma desculpa geral, também, que era difícil pesquisar contrabando, que era uma coisa que acontece na clandestinidade, afinal ninguém vai deixar registro disso.  E quando eu resolvi tomar isso como meu tema de mestrado, a minha ideia foi desde o princípio que era evidente que haveria algum tipo de registro. Se o contrabandista por si não deixou registro, que eu acho correto que ele não produza provas contra ele, mas algum contrabando foi apreendido em algum momento. E por isso eu vim pro Arquivo Público, procurar nos processos-crime. Mas era uma coisa totalmente intuitiva. Nunca ninguém me disse de ter encontrado processo. Pelo contrário.  As pessoas diziam que a minha empreitada talvez não desse certo. E eu vim para o Arquivo Público e comecei a olhar caixas de processos-crime de municípios da Fronteira Oeste… O início foi muito penoso. Porque eu vi muita coisa, muito processo crime sem encontrar nada que me interessasse e aquilo foi me desestimulando, e eu cheguei em algum momento a abandonar. Fui pro Arquivo Histórico. Achando que nos fundos da polícia eu encontraria mais coisas. Aí nos fundos da polícia do Arquivo Histórico, pouca coisa, pouquíssima coisa que não me renderia uma dissertação. E em algum momento eu me decidi. Eu disse, não, eu vou seguir meu faro inicial, como diz Ginzburg, os historiadores têm faro. Eu vou seguir meu faro inicial, eu vou voltar pro Arquivo Público e vou continuar olhando os processos crime. Com mais calma, com mais treino nessa leitura, eu vou seguir fazendo isso. E voltei pra cá e continuei nessa leitura. E a parte que eu digo que é um pouco engraçada é porque aqui, ao longo de todo esse tempo de pesquisa, a gente fez uma rede muito bacana. De pessoas que pesquisavam ao mesmo tempo aqui. E quase todos os dias alguém, ou mais de uma vez, mais de uma pessoa, vinha até a minha mesa perguntar, e aí, já encontrou alguma coisa, e eu sempre balançava a cabeça, não, não encontrei nada. Até o dia que eu encontrei o primeiro processo de apreensão. E eu saí caminhando por todas as mesas, achei, achei o processo, e no final todo mundo se alegrou comigo, porque viram que há muitos meses eu tava na busca. E aquele foi o primeiro, e a partir daquele, outros começaram a aparecer. Eu fui desenvolvendo uma metodologia melhor pra tratar com essas fontes. Eu fui treinando a minha leitura, eu fui também aprimorando a técnica como um todo, de ler mais rápido, de ler o que eu sabia que era necessário ler pra identificar o teor de um processo. Porque o processo crime tem essa característica, ele tem uma capa, só que a capa é a última coisa que vai no processo. É a primeira coisa que o historiador encontra, mas é a última coisa colocada no processo. Então aquela data, aquele título que se coloca eventualmente ali na frente do crime, tudo aquilo foi concluído por fim do processo. E a gente encontra aquilo como a nossa primeira informação. E a gente tem que tentar driblar isso e ler o processo na cadência na qual ele foi se construindo mesmo.  E na capa dificilmente tu encontras o rótulo fiável do que está ali dentro. Então nem sempre tu vais encontrar na capa “Processo de apreensão de contrabando”. Pode encontrar qualquer outra coisa.  E aí tu tens que ler para saber se ele te interessa ou se ele não te interessa. Então tinha que ler todos os processos. Não adiantava olhar só a capa e excluir “esse é de contrabando”, esse é, esse não é. É olhando todos os processos. E à medida que eu fui aprimorando essa técnica de leitura, desenvolvendo a minha metodologia, no trato empírico, eu acho que foi facilitando, o caminho foi ficando mais fácil, ficando mais rápido, mais produtivo, e aí os processos foram aparecendo. Eu consegui reunir um número bem significativo de processos-crime para fazer minha pesquisa de mestrado sobre o contrabando no Rio Grande do Sul. Paralelo a esses processos crime de apreensão de contrabando propriamente, e outros que mencionavam apreensão de contrabando, eu fui me atentando também para processos que se chamam de autos de responsabilidade, que são processos que envolvem sempre funcionários públicos, que no exercício de suas funções conduziram mal os seus trabalhos. E nessa minha zona de fronteira ali que eu recortei (que era Alegrete, Uruguaiana, Santana do Livramento) com imensa frequência os processos de auto de responsabilidade envolviam funcionários da alfândega em Uruguaiana. E quase sempre também tinha alguma questão relativa a contrabando. Por permitir a passagem de contrabando ou não vigiar como deveria ter sido vigiado. E esses processos de auto de responsabilidade foram num número muito maior que as apreensões. E a partir daí eu consegui cruzar esses dois pra conseguir chegar num desenho um pouco mais bem acabado. Porque o número de processos que eu encontrei de apreensão de contrabando não era um número muito grande. Ou seja, eles não condiziam com o que a gente supunha ser a incidência de contrabando na fronteira. Deu algo como, ao longo de todo o período deu um por ano. Evidente que havia mais contrabando do que um por ano! É claro que esses eram só os apreendidos, todos aqueles que tiveram êxito ninguém ia ficar sabendo. Mas mesmo assim, aquele um por ano representava muito pouco do que o que a gente supunha ser.  E daí cruzando com esses autos de responsabilidade a coisa foi ficando menos nebulosa, porque foi possível compreender que a própria alfândega era o vetor da passagem desse contrabando. Havia uma conivência entre uma rede de comerciantes e os inspetores da Alfândega a fim de demonstrar que a Alfândega se justificava, ela recolhia impostos, mas então o comércio ia passar por dentro dela, só que com uma redução de taxação. Isso não era legal, mas era a maneira como o contrabando acontecia. Com uma fachada de legalidade. E a partir dessa pesquisa de mestrado, enquanto, como eu disse, eu tinha que olhar todos os processos para ir depurando o que me interessava, uma coisa que ia me chamando a atenção ao longo dos processos é que a questão do espaço de fronteira sempre aparecia nos processos daquela região. De uma maneira ou de outra. Então o crime de contrabando, é óbvio que ele é um crime de fronteira, ele precisa de uma fronteira pra acontecer. Mas eu percebia que a fronteira apontava em vários processos das mais diferentes naturezas, e eu fui, digamos, separando aquilo. Guardando aquilo na manga pra outro momento. E o outro momento foi justamente o doutorado. Quando eu resolvi pegar todos aqueles processos que apareciam que guardavam relação com a fronteira pra pensar uma rede de crimes de fronteira. Que está baseada em uma legislação internacional, que crimes cometidos de um lado da fronteira, cometidos num determinado lugar só podem ser julgados por aquela jurisdição. Ou seja, no momento que tu vais na fronteira, tu tens a possibilidade de te colocar fora da alçada da jurisdição que pode te julgar, te punir, e pensando nessa valência estratégica de fugir pela fronteira, eu comecei a identificar não tipos criminais específicos, mas posturas dos fronteiriços manejando essa legislação de um lado e de outro, levando vidas entre o lícito e o ilícito, e se movimentando pela fronteira e acabou isso rendendo o próprio doutorado. Que é esse, o “Crimes de fronteira”.

Na semana que vem teremos a continuação da entrevista com a historiadora Mariana Flores da Cunha Thompson Flores!

APERS Entrevista: Marcus Vinícius de Freitas Rosa – Parte II

Deixe um comentário

Hoje damos continuidade à entrevista com Marcus Vinícius de Freitas Rosa apresentada na semana anterior (Clique aqui para ler). O historiador vinha falando das diferentes formas de identificação de negros e brancos nos processos criminais da virada do século XIX para XX.

E em que medida tu acreditas que o teu trabalho pode apresentar uma contribuição pro campo do pós-Abolição?

Pro campo do pós-Abolição eu imagino que seja justamente a importância das relações entre as próprias classes subalternas. Como a noção de raça sempre foi pensada como algo a partir de cima, construída por letrados ou imposto por administradores públicos, ou pela própria polícia, também é importante pensar as relações entre as próprias classes subalternas. Porque as maneiras como eles se relacionam também condicionam as possibilidades de inserção social da população de cor nesse período. Então eu acho que a contribuição é nesse sentido. Também é importante pensar as relações entre as classes subalternas como algo que pode ampliar ou reduzir as possibilidades de inserção social.

E também a questão da problematização da branquidade?

A questão da problematização da branquidade é um tema que eu hoje estou centrado, debruçado, na discussão que eu permeei, que eu fiquei, que ficou implícita na tese. Porque eu estou o tempo todo olhando para negros e brancos em uma perspectiva comparativa. Porque é justamente essa perspectiva comparativa que denuncia as diferenças. Fica mais explícita a diferença de sentido pra cor, quando a gente bota, compara. Mas o meu foco, naquele período não era pensar os brancos, era pensar como cor e raça são utilizados de uma forma prejudicial para os negros. Por isso uma história social do racismo entre as classes subalternas. Então o tempo todo eu fiquei permeando a discussão dos significados raciais brancos. Aí agora sim. Antes não era, ficou muito secundarizado.

É, mas tu descrevendo a tua problemática foi possível reconhecer algumas dessas questões.

Sim.

E nessa nova perspectiva de pesquisa mais recente, o Arquivo Público está no teu repertório de pesquisa? É um espaço que tu pretendes voltar?

Sim, sim, sim. Bom, o que eu pesquiso agora é a formação de identidades raciais brancas, como essas identidades foram construídas, o que elas significam, e quais são as vantagens, os privilégios associados a essa identidade branca. Só que em um período completamente diferente do pós-Abolição. Agora estou analisando a primeira metade do século XIX, tendo uma motivação justamente base da minha trajetória de pesquisa, que é pensar identidades raciais de uma maneira desvinculada da raça entendida de uma maneira científica. A noção de raça não surge no século XIX, como via de regra a gente está acostumado a pensar. Ela assume um caráter científico ao longo do século XIX, mas antes disso, durante muito tempo ela teve uma significação religiosa. A gente pega lá o dicionário do Bluteau, de 1712, ele define a raça como algo que incide a mouros e judeus. Então tem um longo percurso histórico que a raça teve até se tornar científica no século XIX, principalmente na segunda metade do século XIX, que é o momento que essas teorias científicas raciais são adaptadas ao contexto brasileiro. Então eu quis me distanciar e pensar como a raça e a identidade racial branca foi construída em um período anterior à cientifização do conceito. Continuo mesmo com questões muito parecidas, pensar como as relações entre as classes subalternas se dão, mas agora com foco em uma noção de raça que é diferente daquela que predomina na segunda metade do século XIX. E aí sim, as fontes do APERS estão no horizonte. Porque são processos que são muito bons pra pensar as relações entre os grupos raciais.

Processos-crime.

Processos-crime.

Não pensa em inventários, outras possibilidades?

Por enquanto ainda não. Porque eu estou muito centrado nos processos-crime.

E uma outra questão, que até a gente já estava conversando outro dia. Eu acho muito interessante no teu trabalho, e outros trabalhos de história urbana, trabalhos com a cidade de Porto Alegre, que é a possibilidade de reconhecimento por parte do leitor. Ele lê o texto e diz, não, esse lugar eu já andei, esse lugar eu já fui, esse lugar tinha tal coisa, hoje em dia tem tal coisa. Queria te pedir se tu podes falar um pouco sobre isso.

Sim. Eu tive essa preocupação, apesar de não ter trabalhado com plantas urbanas e mapas da cidade como eu gostaria de ter trabalhado, principalmente eu gostaria de ter demonstrado mais, mostrar mais ao leitor no próprio corpo da tese. Fisicamente imprimir todos os mapas, todas as plantas urbanas que eu utilizei… Por que é importante que o leitor se dê por conta de quais são esses espaços na cidade? Identifique na cidade de hoje essas referências? Porque determinados espaços da cidade são referenciais para a população negra de Porto Alegre hoje em dia, mas podem não ser pra maioria da população da cidade. Então é importante que as pessoas que andam pela João Alfredo saibam que aquele foi um espaço importante para o carnaval da população negra de Porto Alegre. Que ali, na década de 1880 e 1890 tinha várias agremiações negras. Ali clubes, sociedades bailantes que tinham a cor como nexo para sua própria formação. É importante que as pessoas saibam que o Rio Branco nem sempre se chamou Rio Branco. Um dia aquele espaço da cidade se chamou Colônia Africana, porque daí a gente consegue entender porque, como, as pessoas começam a se questionar, se se chamou Colônia Africana, por que não se chamou mais? E aí já temos uma discussão sobre modernização urbana e como ela impacta a vida das populações mais pobres, com foco na população negra. Não é que pessoas brancas não passem pelas mesmas experiências de serem removidas dos seus espaços quando elas moram em espaços marcados pela miséria. É que os negros são mais visados quando esse processo acontece. Porque a cor os torna um alvo no processo de modernização. Então é importante, na escrita do texto, ficar o tempo todo mostrando que aquelas ruas antigas tinham outros nomes, elas têm nomes atuais. E as pessoas conseguem encontrar essas referências no espaço da cidade.

Tá certo… Uma última pergunta, mais descontraída… Que que o Marcus faz quando não tá pesquisando?

O Marcus faz três coisas… Joga videogame, toca violão e fotografa (risos).

Três coisas ótimas! Muito obrigado pela entrevista, foi bem legal.

Eu que agradeço.

APERS Entrevista: Marcus Vinícius de Freitas Rosa – Parte I

Deixe um comentário

Marcus Vinícius de Freitas Rosa é pós-doutorando no departamento de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde bacharelou-se em 2005 e licenciou-se em 2006. Ali mesmo completou seu mestrado, em 2008 (Para acessar sua dissertação, clique aqui). É doutor em História pela Unicamp, tendo defendido sua tese em 2014 (Para acessar, clique aqui). É autor, com outrxs historiadorxs, de “Pessoas Comuns, Histórias Incríveis” (EST, 2017), e é especialista em história social do carnaval e história social do racismo, tendo pesquisado processos criminais custodiados pelo Arquivo Público no fundo judiciário.

Marcus, eu queria te pedir pra falar brevemente sobre a tua trajetória e o papel da documentação do Arquivo Público nela.

OK. Hoje em dia eu estudo a temática racial, principalmente a história do racismo e a maneira como a cor e a raça orientam as relações, principalmente entre as classes subalternas. Mas não foi sempre esse meu tema de pesquisa. Eu comecei pesquisando a temática do carnaval em Porto Alegre na década de 30 e de 40, e essa temática, como o carnaval nesse período estava associado muito a determinados espaços de Porto Alegre, determinados bairros onde era larga a presença de trabalhadores e de pessoas negras, a temática do carnaval e o estudo desses espaços me conduziu pra uma outra temática. Eu queria saber como esses espaços tinham se formado, como esses espaços tinham se consolidado em Porto Alegre, como as pessoas que moravam lá efetivamente tinham ido parar lá. Então o tema do carnaval foi me conduzindo aos poucos para a temática das relações raciais, da raça e do significado da cor. Quando eu propriamente defini que a temática do tema de interesse era principalmente cor e raça, aí que eu fui entrar mais em contato com a documentação do APERS justamente por conta dos processos criminais, processos judiciais, porque essas fontes trazem um potencial de conflito e criminalização muito fortes, sobretudo das classes subalternas. E como meu interesse era justamente perceber como pessoas oriundas das classes subalternas se relacionavam umas com as outras e como elas construíam significados próprios pra cor e pra raça, diferente dos entendimentos dos letrados, os intelectuais, ou os integrantes do poder público tinham e lhe atribuíam, eu queria saber como eles se relacionavam, então à medida que eu fui me interessando por essa temática eu fui me aproximando pelas fontes do APERS. Porque na época que eu trabalhava com o carnaval eu trabalhava muito mais com documentação da imprensa. Até na época do Estado Novo, que foi o período que eu pesquisei, basicamente a documentação nos jornais do período. Mas um pouco isso, eu fui me aproximando porque a temática racial pedia que eu chegasse com fontes que mostrassem mais e melhor as relações entre as classes subalternas. Então foi assim que eu fui me aproximando da documentação do APERS.

Desde quando tu começaste a pesquisar a documentação do Arquivo Público?

Isso foi já na fase de preparar o projeto pro doutorado, então isso foi em 2007, 2008. Por aí. Porque no final de 2008 eu já tava com esse projeto pronto. E aí dali por diante foi que eu me aproximei bastante dessas fontes. Foi nesse período, 2007-2008.

Tu trabalhaste com alguma fonte além dos processos-crime, alguma fonte do Arquivo Público?

Agora não me recordo, principalmente processos-crime. Não me recordo se foi aqui que eu encontrei os Relatórios de Presidente de Província, não lembro se foi aqui que eu achei.

Arquivo Histórico.

Deve ter sido lá. Então foram principalmente as fontes criminais.

E de que maneira os qualificativos raciais, e étnicos, e de cor aparecem nos processos criminais?

Então, esse tema é central justamente pra hipótese de pesquisa que eu desenvolvi na tese, que é: negros e brancos aparecem identificados por meio da cor, mas não aparecem na mesma proporção. Negros aparecem muito mais identificados por meio da cor do que pessoas brancas. E as pessoas que são identificadas por meio da cor via de regra são associadas também a adjetivos e predicados e qualidades que são muito desabonadoras, muito negativas. Enquanto pessoas brancas, mesmo tendo uma tendência a não serem identificadas por meio da cor, elas aparecem associadas a adjetivos bem mais, vamos dizer assim, a qualidades bem mais positivas. Geralmente nesse período, final do século XIX, início do século XX, como a presença imigrante é muito forte, os imigrantes são identificados pelas nacionalidades europeias deles. E alguns grupos, por exemplo, judeus, são identificados, e claro, a própria forma de classificação é étnica, ela remete pro aspecto religioso, pra determinada comunidade, mas o critério étnico às vezes pode funcionar como um critério racial, na medida em que ele é acompanhado também por determinadas qualidades ou determinados defeitos, vamos dizer assim. Às vezes é possível encontrar convergência entre critérios étnicos e critérios raciais quando a gente olha pra determinadas nacionalidades europeias que eram acompanhadas por determinadas peculiaridades. Isso fica muito evidente no caso dos alemães mas pode ser encontrado pra outras nacionalidades também, por exemplo, aqui no Rio Grande do Sul a imigração italiana é muito forte. Então isso aponta pra uma maneira muito local, muito brasileira de construir significados, que já não são os mesmos significados que os europeus construíam para suas próprias distinções raciais, mas os significados que são construídos localmente e seus significados que são construídos, e às vezes são construídos, às vezes são reproduzidos, entre as próprias classes subalternas. Porque a ideia de atribuir significados positivos, por exemplo, para os alemães, que são vistos como os melhores trabalhadores, os melhores agricultores, por exemplo, nesse período, não é muito diferente dos significados que as elites atribuem pra esses grupos raciais. Étnicos e raciais. Então você às vezes encontra significados que são bem parecidos por pobres e pelas elites letradas.

E seria possível dizer, acredito que sim, que quando existem características negativas, consideradas negativas, características pejorativas associadas aos brancos a cor não aparece?

Não aparece. Não aparece. São outros critérios. Mesmo quando eles são descritos nas fontes pela vizinhança de uma maneira muito depreciativa, esses significados depreciativos não incidem sobre a cor. Essas pessoas aparecem descritas pelo nome completo. Que é bem diferente da maneira como os negros, via de regra, aparecem. Claro que eles podem aparecer, os negros podem aparecer com o nome completo, mas é mais frequente encontrar apenas o nome acompanhado pela cor, por exemplo, João preto, João pardo, e pessoas brancas não tendem a aparecer com esse mesmo padrão.

Identifica eles como brancos pela presença de sobrenomes europeus?

É. Identifico tentando cruzar diversos elementos. A presença de sobrenomes europeus… Que eu falo sempre que é uma tendência, porque é sempre muito difícil ter certeza absoluta de que essas pessoas são brancas. Quando eu pesquisava algumas regiões da cidade que já são associadas a uma determinada presença étnica, como o Bom Fim, por exemplo, onde você tem uma presença de imigrantes judeus, principalmente, mas a gente encontra outras nacionalidades ali também, então eu tendo a acreditar que essas pessoas ou eram brancas ou tinham a pele clara. Justamente porque elas têm sobrenomes europeus. Mas ao mesmo tempo a gente não pode fechar os olhos para o fato de que houve, sim, miscigenação entre imigrantes e libertos. Por exemplo, quando a gente encontra pessoas que são reconhecidas como pardas ou reconhecidas às vezes como negras mas que aprenderam em casa idiomas estrangeiros porque elas têm o pai ou a mãe europeus. Então a gente sabe que esse processo de miscigenação aconteceu. A gente sabe também que essas pessoas vão herdar o sobrenome europeu. Então isso é um complicador. É muito mais fácil identificar pessoas negras do que identificar pessoas brancas. E eu acho que uma das maiores conclusões a que eu cheguei no estudo é justamente, a gente tem uma demanda muito forte por tentar entender como se constroem identidades raciais brancas, o que elas significam e quais as vantagens que são atribuídas pra essas pessoas. Que é uma lacuna nos estudos históricos.

Na próxima semana apresentaremos a continuidade da entrevista com Marcus Vinícius de Freitas Rosa. Aguarde!

APERS Entrevista: Gabriel Santos Berute – Parte II

Deixe um comentário

Na semana passada, publicamos a primeira parte da entrevista com o professor Gabriel Santos Berute, na qual ele falava de sua experiência de pesquisa com fontes históricas custodiadas no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Confira o restante da entrevista!

Uma coisa que chama atenção é que além de cruzar fontes diferentes, tu também cruzas metodologias diferentes dos teus trabalhos. Quer dizer, tu trabalhas com a metodologia qualitativa, com análise dos inventários, e ao mesmo tempo quantificou as escrituras, e tal. Então eu queria te pedir também pra falar sobre as diferentes possibilidades metodológicas do historiador e como é que isso se colocou pra ti.

No início, acabou sendo uma abordagem mais quantitativa mesmo. Eu percebo no meu trabalho de mestrado, por exemplo, o que eu consegui sobre o tráfico de escravos, que era algo que não tinha no Rio Grande do Sul, um ou outro trabalho de uma forma muito pontual utilizou parte da documentação que eu utilizei, então eu consegui fazer um trabalho que, digamos, apresentou a estrutura desse comércio. Mas de uma forma muito quantitativa. Talvez… Claro, eu só posso dizer isso com essa trajetória que descreveste, talvez eu fizesse de outra forma essa pesquisa se eu voltasse a 2004 para fazer. Mas enfim, eu fiz uma pesquisa bastante quantitativa, e aí com essas pequenas tentativas de uma abordagem mais qualitativa pra saber quem eram esses agentes envolvidos no tráfico de escravos, e é o que me dá o gancho pro doutorado, de ampliar a documentação. Que também seguiu uma abordagem bastante quantitativa, acho que ampliou um pouco a abordagem qualitativa. Como sempre, felizmente, acho que era estranho se não fosse, o projeto inicial era uma coisa e o que foi executado precisou ser adequado ao tempo, às circunstâncias. Eu pensava que inicialmente a abordagem qualitativa fosse bem mais ampla, já no doutorado. Que eu terminei não avançando, e isso se tornou possível com a extensão do trabalho pro pós-doc. Daí eu consegui realizar uma abordagem mais qualitativa, sem abandonar a quantitativa, mas é um exercício. Acho que tem muito a ver com a minha, essa formação tão marcada por abordagens quantitativas. Primeiro sinto uma necessidade de avançar uma pesquisa mais qualitativa, também pela confrontação com a bibliografia, com as metodologias que vem sendo utilizadas, e principalmente na área de, dos estudos sobre elites mercantis, sobre o comércio na América Portuguesa, em outras regiões: é uma necessidade que eu acabei percebendo, mas, eu também ao mesmo tempo, eu percebo quão difícil é isso. Como essa abordagem qualitativa exige outra… talvez dizer o mais difícil ou mais fácil não seja o correto. Talvez o sentido melhor seja…  exige outro tipo de abordagem, existe uma tensão maior, pra mim exige uma quantidade maior de documentação que permita uma reflexão mais aprofundada das relações qualitativas que dá pra estabelecer nessa documentação. Eu me lembro de um texto do João Fragoso, se não me engano um artigo “Pra que serve a História Econômica?”, em algum momento ele registra algo do tipo que “a gente não pode esquecer que atrás dos números existem pessoas”.[1] Então isso eu acho que é um guia importante pensar isso, mas ao mesmo tempo, é claro, pela minha trajetória de formação, eu ainda sinto que é necessário avançar mais nessa abordagem qualitativa. Mas, ao mesmo tempo, por perceber que ela permite perceber outras coisas, não só… Avançar no sentido de que aquela quantificação me dá uma informação importante, mas ela não diz tudo. A qualitativa também não, então elas precisam ser complementares. Ao mesmo tempo que eu sinto essa necessidade pro avanço da abordagem qualitativa, parece que muitas vezes eu sinto a necessidade também da segurança, de uma certa forma, que me traz uma abordagem quantitativa. Talvez por essa trajetória eu acabe conseguindo iniciar um processo de reflexão a partir de algo mais estrutural, que ela mesma pode ser abordada a partir de outras metodologias, e com a incorporação de outras fontes documentais também.

Gabriel, falando um pouquinho mais nessa questão das fontes pra pesquisa qualitativa, e o que dá pra fazer, mais recentemente eu me lembro de uma ocasião em que a gente tava conversando e tu me falaste de outras fontes judiciárias de interesse. Queria te perguntar então pra falar um pouco quais são e o que que essas fontes podem oferecer?

Aqui do Arquivo Público, durante o doutorado, principalmente, eu fiz várias tentativas de qualificar a análise desses comerciantes que eu via numa abordagem quantitativa. Então os diversos processos, eles aqui aparecem com algumas nomenclaturas diferentes, assignações de dez dias, processos de cobrança de dívidas, são documentações que me interessam pra justamente entender aquele dado quantitativo, por exemplo, o Gabriel deve pro Rodrigo, tá, mas deve por quê? Em que circunstâncias surgiu essa dívida? Deu problema por quê?  Tem outras documentações, processos de contestações de inventários, normalmente são bastante ricas, porque ajudam a entender as circunstâncias da morte, um grupo familiar, o que representa a morte da sua principal figura, as preocupações com a sucessão, cuidado da família, mas dos bens também, quais foram as estratégias acionadas, e a família do… Tem um dos trabalhos que eu fiz que eu andei pesquisando um grupo familiar que havia um grande comerciante na capitania, estabelecido em Porto Alegre, ele, o filho mais velho fez uma carreira jurídica bastante exitosa, chegou a Conselheiro do Império, Vice-Presidente da Província do Rio de Janeiro e as filhas fizeram, mantiveram conexão da família com o mundo mercantil. As filhas casaram com comerciantes também de destaque, e… mas é interessante que o inventário dessa família, ele se estende por muitos anos porque tem uma segunda esposa, tem outros filhos, são muitos herdeiros, filhos do primeiro e do segundo casamento, há diferenças grandes entre os filhos, então tem filho que administrou os bens do pai durante um tempo, e aí precisa prestar conta pro inventário da mãe, que se acumula com o inventário do pai, então mostra como as relações familiares acabavam por ser bastante complexas.[2] Que outras documentações eu me lembro daqui? Os processos-crime ficaram algo que sempre ficou assim “preciso olhar com maior atenção” e acabou ficando só na fase exploratória, assim. Não acabei avançando. Fui mais focado nesses processos que poderiam indicar mais claramente cobranças de dívidas, desses diversos formatos que aparecem aqui.

E o que tu tens pesquisado mais recentemente? Tens vindo pesquisar no Arquivo Público?

A última vez foi no meio do ano passado, porque eu tava buscando esse inventário que eu citei há pouco, foi uma das coisas que eu localizei no meio do ano, mas já é mais pra tentar trabalhar, cruzar com a documentação do Arquivo da Cúria, que é o registro de casamento, que tem sido desde 2012 a minha principal pesquisa. Contribuição no abastecimento do banco de dados supervisionado pela Ana Scott, da Unicamp, que é a construção do banco de dados com os três registros eclesiásticos, batismo, casamento e óbito, a princípio o objetivo é ter toda a Madre de Deus de Porto Alegre, desde a sua fundação até 1872, os três registros para a população livre e escrava. Uma documentação que o banco de dados tá sendo disponibilizado publicamente,[3] então tem todo um cuidado na hora do registro desses documentos, ser o mais fiel possível, evitar atribuições para que quem venha consultar possa ter segurança que aquele dado é fidedigno. E então sempre a volta, sempre muito prazerosa, ao Arquivo Público, é tentar ver meios de explorar mais essa documentação. E sigo tentando fazer o que eu não consegui fazer no doutorado, que foi abandonado no percurso do doutorado, que é avançar nessa análise mais qualitativa desses comerciantes. De entender suas relações familiares, claro, a partir de uma base que é quantificável, mas também prestando atenção que, tá, um comerciante que aparece com, num período em torno de vinte anos como padrinho de cinquenta crianças em Porto Alegre, isso significa o quê? Será que a relação que ele estabelecia com as famílias desses afilhados era igual entre os cinquenta? Que tipo de laços se estabelecia com essas pessoas? Se a criança foi batizada num ano, em dois ou três anos morreu, o laço com a família se rompe? Se constrói de outra forma? Eu percebi que em alguns casos os batismos se cruzam com os negócios vistos aqui nas escrituras. Parece que há um reforço permanente dos laços mercantis e familiares dentro desse grupo. Que parece bastante interessante, mas também sempre tentando buscar documentação diferente, nova, pra seguir com essa pesquisa.

Bom, então uma pergunta mais informal pra concluir a entrevista. O que que o Gabriel faz quando não tá nem lecionando nem pesquisando?

O Gabriel lê literatura, ouve música, vê TV, passeia com a companheira, fica de bobeira em casa também [risos]. É bom.

Então tá, Gabriel, muito obrigado!

[1]     O artigo de Fragoso pode ser acessado em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2157
[2]    O trabalho “O Comendador Travassos: família e negócios na comunidade mercantil de Porto Alegre, primeira metade do século XIX.” foi apresentado no II Encontro Internacional Fronteiras e Identidades, ocorrido em Pelotas em 2014.
[3]     Pelo site http://www.nacaob.com.br

.

Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.

APERS Entrevista: Gabriel Santos Berute – Parte I

Deixe um comentário

Gabriel Santos Berute é professor de história no IFRS / Campus Viamão. É licenciado em história pela UFRGS (2003), mesma instituição onde concluiu seu mestrado (2006) e doutorado (2011). Entre 2012 e 2015 realizou estágio pós-doutoral na Unisinos. Em suas dissertação e tese (clique nos links para acessar) utilizou fontes do judiciário e do tabelionato custodiadas no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, onde concedeu sua entrevista.

Gabriel, eu quero te pedir para falar um pouco sobre a tua trajetória de pesquisa e o papel das fontes do Arquivo Público nela.

Meu primeiro contato com o Arquivo foi em 2001, como bolsista de Iniciação Científica da Professora Helen Osório, em um projeto sobre história da América, Prata, Rio Grande do Sul e a questão da mão-de-obra escrava africana e indígena. Aqui, a tarefa era principalmente com o fichamento de inventários post-mortem de Rio Pardo. Tinha toda metodologia definida pro projeto, era 0 e 5, se não me engano, que era, eu fichava todos inventários rurais com esse critério, com essa metodologia. Os inventários dos anos 0 e 5. Esse foi o primeiro contato com o Arquivo, isso deve ter durado um ano, mais ou menos, depois o segundo recorte foi uma documentação que a princípio nem era pra estar aqui… Livros de registro da Câmara. Tabelionato. Tava aqui mas também interessava pra pesquisa, então era uma transcrição. Tinha uma orientação dela de como fazer, o que que interessava, e eu fazia os fichamentos. Que que era mais?

Pois é, a questão seguinte é como chegou a um interesse mais específico pelos comerciantes a partir do estudo do tráfico negreiro?

Ah, durante o mestrado o grosso da pesquisa foi com documentação do Arquivo Histórico, mas aqui tinha uma complementação importante, que era conhecer os agentes que estavam envolvidos no tráfico. Então, identificar os inventários post-mortem e testamentos pra tentar entender as relações, pra tentar entender aqueles agentes que apareciam no tráfico. Numa característica geral do comércio colonial, uma multidão de gente participa do tráfico de escravos, ou qualquer outro ramo do comércio, mas só uma pequena parte deles faz isso de uma forma mais volumosa… por maior tempo… com rotas mais ampliadas… A tentativa era identificar esses comerciantes que mais se destacavam nesse outro conjunto documental. Era a partir do fichário, ainda na época não tinha o fichário digitalizado,[1] era direto no fichário das gavetas, e aí procurar nome por nome dos que interessavam. Como era uma pesquisa de mestrado, com pouco tempo, também tinha a ver com o tipo de experiência que eu tinha até então de pesquisa, foi uma pesquisa mais pontual desses comerciantes, eu não cheguei a fazer como poderia ter sido a metodologia de uma quantidade grande de inventários e testamentos. Era bem pontual a partir de uma lista formada por essa outra base. Com o tempo, a documentação do Arquivo Público se tornou cada vez mais importante pro meu estudo desses comerciantes. Do mestrado pro doutorado na hora de definir o que eu queria fazer, a princípio eu tinha pensado em seguir a pesquisa no tráfico específico. Como é que o africano escravizado chega? É desembarcado no Rio Grande, no porto do Rio Grande, ou chega em Porto Alegre, mas como é que ele para em Santa Maria, como é que ele para em outras regiões da capitania? Mas eu acabei me dando conta que seria um trabalho muito… como é que eu vou dizer… de formiguinha. Pulverizado. Que eu não ia mais encontrar, até por causa do período, como eu tinha antes uma guia de transportes de escravos. Eu teria que ver uma quantidade grande de inventários para de repente perceber uma regularidade de credores, ou ver na lista de créditos e débitos pessoas… indícios de comercialização de escravos, processos de… processos de cobranças de dívidas, que foi uma documentação que eu cheguei a pesquisar aqui, mas para um outro momento. Lendo trabalhos de colegas que fizeram para outras regiões, nessa transição de mestrado pra doutorado veio a ideia de trabalhar com os comerciantes de uma forma mais geral e tendo como base principal os livros de tabelionato. Livros de escritura de compra e venda e crédito, sociedade, e daí foi uma pesquisa mais volumosa, porque eu fichei inventários, as escrituras de Rio Grande, o único tabelionato que tinha pro período, que era 1808-1850. Para Porto Alegre a ideia inicial era também seguir o mesmo critério, todas as escrituras do período, mas também em função do tempo eu precisei fazer um novo recorte. Tinha o mesmo tratamento dessa documentação para fazer. E me parece uma fonte bastante rica… Eu fiz uma abordagem para saber os tipos de negócios que estavam sendo feitos… É interessante que as negociações de escravos não aparecem com grande frequência, elas aparecem no conjunto, sei lá, numa propriedade, numa estância, junta os escravos. Mas somente como comercialização de escravos aparece muito pouco ou quase nenhum. Tem algum momento que agora me foge a data, passou assim registros específicos de compra e venda de escravos. Essa é uma documentação que eu sigo utilizando de forma mais esporádica no meu banco de dados, mas aí a partir do cruzamento com outras documentações, agora principalmente os registros de habilitação matrimonial, de casamento e de batismo. A documentação aqui do Arquivo, as escrituras, elas dão uma informação bastante importante. Me permite saber como esses comerciantes que eu já tinha identificado, e aparecem nas transações de lojas, de bens urbanos e rurais, de animais, dívidas, como é que eles aparecem como credores, como devedores. Mas as relações entre eles é limitada, pelo que eu consigo perceber. Eventualmente, dois comerciantes que eu conheço do tráfico aparecem comprando coisas juntos ou aparecem vendendo um para o outro, uma coisa nesse sentido. Mas uma informação mais detalhada falta. Falta, por exemplo, nas escrituras de procuração, que é uma documentação que vem sendo utilizada pra pesquisa de grupos mercantis, que é bem interessante, que alguns pesquisadores… O Jucá de Sampaio, da Federal do Rio de Janeiro, percebe que as escrituras de procuração eram uma espécie de contratos de curta duração para negócios específicos, por um tempo mais limitado, diferente de uma sociedade que pressupunha uma associação mais ampla, de maior prazo. Mas então, por exemplo, eu via alguém de Porto Alegre nomeando uma série de comerciantes, mas a dúvida de exatamente qual era a relação entre essas pessoas, o cruzamento dessa documentação do Arquivo Público com os casamentos, com os batismos, me dá, me amplia essa informação. Conseguir perceber que eu nomeio alguém não só por uma questão comercial, mas eu também tô reforçando laços familiares, laços de afetividade com essas pessoas.

Os casamentos e batismos tu encontraste na Cúria?

Na Cúria, mas como foi parte do que eu tinha contato no pós-doc na Unisinos, era uma documentação que os bolsistas de Iniciação Científica participaram do projeto, e a supervisora do projeto, Ana Scott, anteriormente ou já tinham digitalizado, ou tiveram acesso via Family Search.[2]

Na próxima semana, conheceremos o restante da entrevista com o historiador Gabriel Santos Berute! Acompanhe!

[1]     O entrevistado refere-se à catalogação dos processos no sistema AAP, que permite a realização de buscas nominais.
[2]     Family Search é uma organização de pesquisa em história da família empreendida pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, e mantém registros de natureza genealógica do mundo inteiro por acesso gratuito por meio do site https://www.familysearch.org/pt/

APERS Entrevista: Fábio Kühn – Parte II

1 Comentário

Hoje publicamos a segunda parte da entrevista com o professor Fábio Kühn. Na primeira parte da entrevista, ele estava nos falando da documentação do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul empregada em sua pesquisa. Aqui, ele segue respondendo sobre o assunto.

Mas devo confessar que o que me deu mais gosto e que eu realmente viajei, muitos meses a fio, foi a pesquisa nos livros de notas do século XVIII, que estavam inacessíveis na época. Para minha sorte, como professor aqui da Universidade Federal, tenho muitos alunos que trabalham como estagiários lá, e me lembro que na época era estagiário o Jovani Scherer. Eu fiz uma solicitação pra direção do Arquivo Público pra poder acessar esses livros que estavam fora de acesso por motivos de má-conservação. Eu insisti muito, justificando a importância dessas fontes, e a diversidade. Se os inventários e testamentos são documentos mais ou menos padronizados, e que seguem um determinado modelo (a partir da legislação portuguesa, da legislação civil e eclesiástica), nos livros de notas… e eu tinha uma noção do que existia nesses livros de notas por conta de uns catálogos publicados pelo Arquivo Público no início do século XX. Catálogos do notariado de Porto Alegre, publicados ainda na época do Borges de Medeiros, logo depois da inauguração do arquivo. Não me lembro como é que me deu nas mãos esses catálogos, acho que através do Instituto Histórico. E aí eu me surpreendi com a diversidade de fontes que esses livros traziam. Escrituras de compra e venda, cartas de alforria, contratos dos mais diversos tipos, sociedades, arrendamentos, procurações, enfim, uma plêiade de informações sobre aquela sociedade que estava se formando, que eu pensei, não posso deixar de olhar. E consegui autorização pra consultar, ainda que em um lugar resguardado, mediante todo cuidado, porque alguns desses livros estavam literalmente se desmanchando, possivelmente eu fui o primeiro em cem anos a manuseá-los, porque outros colegas que tinham trabalhado com o período não tinham… e na verdade, meu interesse inicial nem era olhar todos tipos de fontes que os livros de notas tinham, mas sim as escrituras de dote. Como eu estava preocupado com estratégias familiares, eu tava muito preocupado em ver a disseminação dessa prática muito comum em sociedades de Antigo Regime, que era a dotação de filhos e filhas que se casavam, e tinha um caso especial, particular, do Manoel Fernandes Vieira que eu sabia que tinha escritura de dote. Estava justamente nesses livros inacessíveis. Ao acessar essa documentação um novo mundo se abriu, porque eu percebi a riqueza dessas fontes, transcrevi alguns desses documentos, fotografei outros, com muito cuidado, porque alguns desses livros eu me lembro que literalmente estavam… um deles tinha um buraco, literalmente, no meio do fólio que fazia com que cada vez que se virasse a página alguma informação se perdesse, então eu procurei fotografar. Os livros de notas me revelaram muitos detalhes sobre essa sociedade oitocentista…[1] Não apenas as informações sobre as famílias que eu queria, mas diversos tipos de transações comerciais, compra e venda de imóveis.

É possível, por exemplo, fazer um estudo, que eu saiba não foi feito ainda, sobre o mercado de terras no século XVIII a partir das escrituras de compra e venda de terras. Percebi que em alguns casos os personagens que eu estudei se aproveitaram da conjuntura de guerra para comprar propriedades a preços muito baixos e que, terminada a guerra, venderam as mesmas estâncias por valores muito maiores, ou seja, aquilo que a Helen já falava na dissertação de mestrado dela, a fronteira já estava de certa maneira fechada. A maior parte das terras estava apropriada e a ideia do Rio Grande do Sul como uma terra de ninguém, uma fronteira onde qualquer um podia chegar e se instalar não é bem verdade. Essa documentação notarial permite vários tipos de abordagem. Fiquei meses debruçado naquilo, passei muitas tardes dentro do arquivo pesquisando e agradeço publicamente.

A gente tem o teu trabalho, também o levantamento das cartas de alforria, mas de fato a documentação notarial é um universo a ser explorado.

Pouco explorado e eu, me chamava atenção que os historiadores locais não se valessem dessa fonte. Eu me lembro de ter visto referência a documentação notarial justamente no trabalho do Monsenhor Ruben Neis, que foi talvez um dos pioneiros… Mas também assim, uma consulta muito, muito pontual, e creio que mereceria um estudo sistemático. Mais sistemático. Uma documentação que permitiria estudos de história serial, quantitativa, mas não apenas, já que a documentação é muito variada e revela detalhes sobre o funcionamento daquela sociedade que não aparecem em outras fontes.

Veja só, Fábio. Já vai entender por que que eu tô perguntando isso. Em que ano tu pesquisaste lá?

Eu pesquisei em 2003 e 2004.

Chegaste aos nomes dos inventários através daquelas fichas?

Através daquelas fichas que existiam naquele armário.

Pois é, isso é uma informação que talvez te interesse, interesse a quem ler essa entrevista, que hoje em dia isso tá computadorizado. Está catalogado. É um sistema que ainda precisa ser aperfeiçoado, mas hoje em dia tu chega com um nome, eles vão lá procurar, tem condições de encontrar esses… Inclusive esses, talvez, que tu não encontraste antes.

Quem sabe, talvez uma nova busca hoje pudesse encontrar esses inventários, especialmente alguns que me impressionaram muito. Agora eu quero apenas fazer um adendo, que agora falando eu me lembrei. Além dos inventários, testamentos e livros de notas, outra coisa que aí graças ao Jovani, ele me chamou a atenção, eu nem sabia que existia, porque isso não existia registrado. Uma documentação bárbara e que ajuda a entender as dificuldades dos pesquisadores desse período mais recuado é a documentação da Câmara. Sim, alguém que conhece um pouco os fundos deve estar pensando “mas a documentação da Câmara de Porto Alegre não tá lá no arquivo Moysés Vellinho?” Sim. As atas da Câmara, boa parte da documentação tá lá. Correspondências. Livros de Posses. No entanto, alguns códices do Registro Geral da Câmara em Viamão estavam por algum motivo no Arquivo Público. Por algum motivo não. Na verdade a resposta eu descobri alguns anos depois. As Câmaras coloniais, como muita gente sabe, elas reuniam aquilo que podemos chamar hoje Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Quando da organização dessas fontes, absurdamente, elas foram desmembradas. E é por isso que o fundo Câmara, documentação da Câmara de Viamão e Porto Alegre, ela é encontrada em parte no Arquivo Moysés Vellinho, outra parte está no Arquivo Público, não sei se essa documentação não foi enviada depois para o Moysés Vellinho, e outra parte no Arquivo Histórico. Os livros da almotaçaria, os livros dos almotacéis, funcionários da Câmara, estão também no Arquivo Histórico. Então a incompreensão da estrutura administrativa colonial na hora de gerar os fundos pulverizou a documentação da Câmara, talvez de forma involuntária. Não deveria estar no Arquivo Público, mas estava lá.

Bom, Fábio, encaminhando pro fim da entrevista, tu pretende voltar pro Arquivo Público?

Com certeza. Um acervo como esse, acho que é inesgotável. Embora meus últimos projetos de pesquisa estivessem se debruçando sobre um espaço extra-Continente, agora por conta do novo projeto de pesquisa que estamos começando em 2019, sobre a produção cartográfica dos engenheiros militares na segunda metade do século XVIII, certamente o Arquivo Público vai entrar na nossa rota de novo, depois de alguns anos pesquisando em arquivos de fora de Porto Alegre. Certamente me verão lá em algum momento, buscando informações para o projeto novo, porque é um acervo, como eu disse, talvez o arquivo em si, o acervo que ele abriga é dos mais extraordinários que eu conheci comparando com arquivos de outros lugares, a própria ideia de ter um arquivo como esse em moldes modernos já é algo incrível.

Espero que essa entrevista te sirva como estímulo pra voltar a frequentar nossa sala de pesquisa.

Com certeza. Voltarei.

Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.

[1]     Os livros notariais do século XVIII encontram-se indisponíveis devido ao seu mau estado de conservação.

APERS Entrevista: Fábio Kühn – Parte I

2 Comentários

Fábio Kühn é professor de História do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem 51 anos e concluiu sua licenciatura em 1992 e o mestrado em 1996, ambos pela UFRGS. Defendeu doutorado em 2006 na Universidade Federal Fluminense, e entre 2015 e 2016 realizou estágio pós-doutoral no King’s College London. Publicou o livro “Breve História do Rio Grande do Sul” (2002, Leitura XXI), além de sua tese “Gente da Fronteira” (2014, Óikos), para a qual pesquisou documentos cartoriais e notariais custodiados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, de que nos falou na seguinte entrevista.

Fábio, eu queria começar te pedindo pra falar em termos gerais sobre a tua trajetória profissional e as principais pesquisas que tu realizou.

Bem, eu sou professor na Universidade Federal já há vinte anos. Talvez seja importante eu falar um pouquinho da minha trajetória anterior ao ingresso como professor e pesquisador. No início dos anos 90, quando começávamos a fazer o mestrado, a gente entrava ainda sem projeto de pesquisa definido. Depois de realizar algumas disciplinas, eu resolvi colocar em prática então um projeto de pesquisa pra estudar… eu queria, na verdade, fazer uma história das mentalidades do período colonial no Rio Grande do Sul. E tinha muita vontade, era um sonho antigo, de pesquisar na documentação, que já tinha sido consagrada por outros historiadores da época, do Brasil, documentação da Inquisição, inquisitorial, que tinha um pequeno problema: estava em Lisboa. Não existia o projeto Resgate, o projeto que digitalizou e democratizou essas fontes. Acabei focando uma documentação eclesiástica existente em Porto Alegre, no arquivo da Cúria, que se debruçou sobre as visitas pastorais, as visitas promovidas pelo bispado do Rio de Janeiro no século XVIII, início do século XIX, quando eram enviados representantes do prelado, visitadores, que percorriam as paróquias e freguesias e faziam relatórios sobre a situação material e espiritual dos fregueses. A gente tava em um momento em que procurávamos romper um pouquinho com aquela história mais de viés estruturalista, de fundo econômico e político. Procurávamos trabalhar mais com a história cultural. Cultural e história social. E portanto a minha dissertação se debruçou sobre uma documentação ainda inédita que procurou ver como se deu esse processo de normatização dos corações e mentes dos fregueses sul-riograndenses que moravam nessa remota fronteira do século XVIII. Essa foi minha dissertação de mestrado, não publicada até hoje, mas que foi minha porta de entrada para o período colonial. Ao ingressar na Universidade, aí pude me preparar para fazer minha tese de doutorado. Eu segui mais ou menos dentro da mesma linha, mas trabalhando com a história social, história da família em particular, e a pesquisa de doutorado resultou no trabalho que depois virou livro, “Gente da Fronteira”, um estudo sobre as estratégias familiares da primeira elite sul-riograndense que se formou no século XVIII. Depois do doutorado eu continuei perseverando na história colonial, e desenvolvi uma série de projetos, um projeto de pesquisa sobre o governador José Marcelino de Figueiredo, personagem que havia aparecido muito na minha tese, publiquei uma série de artigos e trabalhos sobre ele, e mais recentemente, nos últimos anos, acabei entrando num campo que nunca tinha trabalhado, campo da escravidão, em um projeto que está se encerrando, investiguei a questão do contrabando de escravos no Rio da Prata, principalmente a partir da Colônia do Sacramento. Meus interesses basicamente orbitam em torno de temas de história social, menos da história cultural, hoje, e principalmente dessas sociedades de antigo regime que existiram nessas paragens aí no século XVIII e comecinho do século XIX.

Certo. E me diz uma coisa. Quais fontes do Arquivo Público que tu pesquisaste que foram úteis nestes teus trabalhos de pesquisa?

Bem, o Arquivo Público é um capítulo à parte na minha formação. Talvez seja o arquivo mais formidável da cidade em termos de acervo… Pela quantidade e qualidade, embora, como eu disse, tenha outros arquivos fantásticos, o próprio Arquivo da Cúria tem uma documentação excepcional, Arquivo Histórico, agora o Arquivo Público, ele… até pelo perfil das fontes que ele guarda, pra minha pesquisa de doutorado ele foi absolutamente fundamental. E eu pesquisei três tipos de fontes que o Arquivo Público abriga. A documentação cartorária (e aqui eu me refiro aos inventários, mas também aos testamentos, que nem sempre estão apensos aos inventários, existe uma documentação, existe um fundo de testamentos que estão registrados em livros próprios), e a documentação notarial. São dois tipos de fonte. A documentação notarial que basicamente para mim residia no interesse em consultar os primeiros livros de notas, onde estavam registrados os mais diversos tipos de escrituras… Vou falar em partes, nesses dois momentos.

A documentação cartorária, em primeiro lugar. Ao contrário de outras pesquisas, como a da minha colega Helen Osório, que também examinou exaustivamente os inventários do Arquivo Público, eu optei por uma outra metodologia. A Helen, trabalhando com história serial, quantitativa, fez uma busca… por períodos. Ela estipulou um período que seria estudado do século XVIII e estabeleceu faixas de cinco anos, pegando todos os testamentos existentes naqueles anos, não me lembro quais os anos exatamente, mas enfim. Estabeleceu, o que é uma metodologia aplicada para esse tipo de trabalho em história serial, quantitativa. A minha abordagem foi um pouco diferente, talvez até pela minha influência teórica ser outra. Devo confessar que estava muito, na época, influenciado pela micro-história italiana, por uma abordagem qualitativa, e não quantitativa e assim eu elenquei um conjunto de famílias que eu estudei na minha tese, três famílias principais. Aonde eu emulei claramente o Giovanni Lévi no seu capítulo famoso d’“A Herança Imaterial” que ele estuda três famílias importantes da paróquia de Santena, e outras famílias que ajudaram na formação, no povoamento original da região de Viamão, que é o locus da minha tese.

Feito isso, estabelecidos quais eram os grandes troncos familiares, eu fui, eu fiz uma busca nominativa. Procurei todos inventários dos chefes de família, filhos, enfim, parentes que pudessem de alguma maneira informar sobre as estratégias desses núcleos familiares. Levantei algumas dezenas, o número exato eu não vou me lembrar agora, de testamentos, mas a partir dessa metodologia. Então em termos estatísticos poderia se questionar até que ponto minha mostra é representativa, já que de um universo talvez de milhares de inventários, eu trabalhei com algumas dezenas. No entanto, essa metodologia de fazer buscas nominais permitiu eu estudar a fundo o caso de algumas famílias emblemáticas e estabelecer ou sugerir ao menos alguns padrões de comportamento a partir de um modelo, também influenciado pelo Levi, um modelo generativo, modelo de sucessão familiar que estava embasado nas práticas desse conjunto de seis, oito famílias que eu me debrucei com detalhes. Nem sempre encontrei os inventários que procurava, no entanto. Esse foi um problema que, né, quando a gente faz a busca… Quando a gente faz uma busca, não digo aleatória, mas uma busca a partir de recortes que tu estabelece anos x pra buscar, tu pega inventários de sujeitos que tu nunca ouviu falar. Eu tinha os nomes das pessoas que eu queria. Mas não achava os inventários. Por isso, recorri aos testamentos. Embora uma parte dessa documentação esteja no Arquivo da Cúria, a legislação da época determinava que uma parte dos testamentos fosse aberta pela justiça eclesiástica e outra parte pela justiça civil. E é por isso que no Arquivo Público você encontra um conjunto de testamentos e no Arquivo da Cúria, outro conjunto de testamentos. Nunca cotejei pra ver se tem uma repetição, mas aparentemente são dois conjuntos diferentes. Pra quem se debruça sobre questões patrimoniais o testamento é muitas vezes frustrante, pela pouca precisão em relação aos inventários. Mas como eu procurava outro tipo de informação os testamentos… Pesquisei também algumas dezenas de testamentos que complementaram as informações dos inventários.

Na próxima semana será publicada a segunda parte da entrevista com Fábio. Aguarde!

APERS Entrevista: Sarah Calvi Amaral Silva – Parte II

Deixe um comentário

Hoje publicamos a segunda parte da entrevista com a historiadora Sarah Calvi Amaral Silva, que utiliza as fontes primárias custodiadas pelo APERS para desenvolver suas pesquisas.

Quais são as contribuições que tu acredita que o teu trabalho pode ter pro desenvolvimento do campo do pós-Abolição?

Eu acho que uma das principais questões que começaram a surgir ao longo da pesquisa é a vitalidade de uma noção de raça baseada na percepção do fenótipo. Tu nota que reconhecer as pessoas pela aparência é uma coisa muito, muito arraigada. Principalmente porque nos anos 30 é registrado, principalmente numa literatura mais sociológica como uma quebra do uso de noções biológicas de raça para pensar a população brasileira em políticas públicas e uma série de questões que envolvem identidade nacional e outras pautas políticas que surgiram nesse período. E o que tu vê na prática é uma noção bem diferente. A raça não só sobrevive a toda essa discussão como é reinventada e recolocada sob outros termos do mesmo objetivo, que é classificar as pessoas pelo fenótipo. Pela textura do cabelo, pela largura do nariz, pela cor. Então a cor e a raça, na sociedade brasileira que é racialmente hierarquizada, elas têm uma plasticidade teórica e dos seus usos sociais que ela é muito arraigada mesmo nas nossas relações, então eu acho que é ver mesmo que existe uma política institucional do Estado brasileiro de reconhecer as pessoas dessa maneira. Assim como as pessoas também têm a sua maneira de reagir a isso e reinventar e ressignificar a raça biológica científica, por exemplo, de acordo com as lutas negras. De se reapropriar desses conceitos de uma outra maneira pra poder organizar as pautas políticas dos grupos negros, enfim.

Tu tava falando e eu me lembrei de uma questão que é interessante se tu fizer um contraponto que é bem o período de difusão das teses do Gilberto Freyre. Da democracia racial, da positivação da mestiçagem.

É claro que as teses do Gilberto Freyre abriram uma nova perspectiva. Evidente que a gente não tá falando do mesmo contexto da virada do século XIX pro XX, daquele racismo científico super duro que veio com as teorias raciais no Brasil ali no final do XIX. Então é um outro contexto mesmo, e a discussão da positivação da mestiçagem recoloca o debate numa outra perspectiva. No mínimo as pessoas têm que responder àquela pauta ali. Ou seja, se tu quer justificar que tu ainda acredita na raça biológica, pelo menos tu tens que dar uma volta pra poder colocar aquilo como uma coisa aceitável frente a um contexto que já questiona isso de uma maneira bem veemente. Já tem vários contrapontos ao racismo científico à raça biológica, muito nessa esteira que o Gilberto Freyre criou no Brasil. Gilberto Freyre e os pares dele, porque ele não tava sozinho. Existia todo um grupo de intelectuais que também tava tentando repensar as relações sociais brasileiras de uma outra maneira que não baseadas na noção de raça. Mas eu acho que a gente tem que contextualizar esses debates de uma maneira adequada para não perder de vista que nem só de cânones vivia a intelectualidade brasileira e as áreas de saber que se apropriavam disso, porque os médicos, por exemplo, eles tão discutindo eugenia ainda nos anos 40. Nas revistas médicas, a discussão ainda é como formar uma raça eugênica, como a mestiçagem vai desembocar na degenerescência de toda população brasileira, esse discurso ainda existe, talvez travestidos de outros conceitos, de uma maneira um pouco diferente, mas ele persiste ainda. Então a gente tá falando de que? De medicina legal? De direito penal? De sociologia? De antropologia cultural? Apesar de essas áreas ainda nos anos 30 e 40 não serem bem delimitadas, tem um monte de intersecções entre elas, existem algumas especificidades. Em que um médico tá pensando quando vai interpretar o Brasil? Em que um antropólogo tá pensando quando vai interpretar o Brasil? Em que um delegado, um inspetor de polícia tá pensando quando ele enxerga os suspeitos dele andando na rua?

Qual é o sentido de discutir raça em um contexto de retrocesso como o que estamos vivendo e qual é a perspectiva de que esse debate possa chegar numa sala de aula?

Pra responder essa pergunta eu vou me deslocar do meu papel de pesquisadora para o meu papel de professora da educação básica. Quanto tu começa a pensar o pós-Abolição a partir dos teus alunos, quando tu olha pra eles e vê tudo aquilo que tu está pesquisando, que tu está pensando, ali no Arquivo, com as tuas fontes, acontecendo na tua frente, sabe, que os problemas… Por exemplo, discutir a criminalidade… O genocídio da juventude negra. Da violência que as mulheres negras ainda estão socialmente e estruturalmente falando na base da pirâmide. Quando tu vê na escola, por exemplo, várias mulheres chefes de família, a maioria negras, quando tu perde os teus alunos pro tráfico, são realidades que se vê nas periferias das grandes cidades, isso é uma coisa super comum. Tu vê como um trabalho como esse meu, por exemplo, eu acho que do campo como um todo, que pensa essas questões, como isso pode contribuir pra fazer a gente refletir. Eu acho que antes até de abordar diretamente esses assuntos em sala de aula, como estruturar as nossas relações com os nossos alunos de uma maneira antirracista. Sabe? Porque eu acho que fazendo uma história social do racismo o foco em estudar a criminalidade, quando eu fiz, tu vês que o pior do racismo é que ele desumaniza as pessoas. Sabe? Então pra mim, assim, como professora da educação básica, todo esse debate que eu tava fazendo na minha pesquisa ao mesmo tempo em que eu tava dando aula na escola pública, no ensino fundamental, serviu para eu estruturar minhas relações com meus alunos de uma maneira bem diferente. Sabe, tentando, trabalhando, sempre isso, autoestima dos meus alunos, tentando trazer temáticas que eles se enxergassem na história. Que eles vissem que eles são parte do processo histórico, que eles são protagonistas, na verdade. E que não é porque não tá ali no livro didático que a história não existe. Então são essas coisas que vão acontecendo assim do dia-a-dia da escola, na minha prática docente que vão sendo muito informadas pela pesquisa, claro, em confronto com a realidade que eu encontrava ali. Que é bem diferente da do Arquivo! Ali são meus alunos, e a gente trabalhando junto, mas assim: eu acho que nesses tempos de retrocesso político então, quando eles se tornam ainda mais vulneráveis, e a gente também como professor, como categoria, eu acho fundamental. Não tem como tu entrar numa sala de aula, no meu ponto de vista, ainda mais numa escola pública, sem abordar isso. Os nossos alunos são esses protagonistas.

Por fim uma questão para encerrar a entrevista. O que Sarah faz quando não está nem pesquisando nem na prática docente?

Sarah é mãe do João Antônio [risos], meu filho que fez dois anos de idade, e basicamente eu sou mãe. E tento também ser esposa, amiga, parceira dos meus colegas. Acho que é isso. [risos] Por enquanto minha vida tá tomada pelo João e pelas coisas boas da vida que a gente precisa: compartilhar com os amigos, de abraço, de amor, que eu acho que nessa conjuntura a gente tá muito carente dos afetos, então essas são minhas prioridades [risos].

Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.

Older Entries