Para dar sequência às postagens referentes ao acervo da Secretaria da Justiça (1975-1991), suscitaremos o debate sobre o porte de armas, visto que, em meados de 2017, este tema retornou à mídia brasileira, devido à reivindicação de parlamentares acerca da revogação do Estatuto do Desarmamento. Sabemos que a violência no Brasil é um tema de grande preocupação entre a população, assim, as discussões acerca da possibilidade de permitir novamente o porte de arma tornam-se recorrente e divide opiniões. Segundo Lima (2009), pode-se dizer que há na sociedade uma divisão entre “cidadãos de bem” e os outros “os bandidos”, que, para parte da população, deve ser tratado de forma diferente em relação às ditas “famílias e os cidadãos de bem”, o que implica que tais grupos tenham o direito de defesa.
A Lei 10.826, referente ao Estatuto do Desarmamento, decretado em 2003, considerou crime o porte de armas sem registro ou autorização legal, assim como a sua comercialização. Em reportagem para o jornal El País, o jornalista Gil Alessi apresenta dados comprovando como era comum até esta data, o livre consumo de armas em lojas de artigos esportivos como, por exemplo, na loja Mesbla que oferecia aos clientes o registro grátis junto com a compra de uma pistola ou revólver. Portanto, a aquisição do produto era transparente e a população poderia circular livremente em locais públicos carregando consigo arma de fogo sem impedimentos.
No acervo da Secretaria da Justiça, entre as solicitações de pensão, observamos algumas micro-histórias referentes aos familiares que pediram auxílio ao Estado. Dentre elas, há duas histórias que permitem a reflexão acerca do uso de armas de fogo durante as décadas de 1960 e 1970, período anterior ao Estatuto do Desarmamento.
As viúvas Irma e Dilma, solicitaram em 1977 a revisão de pensão em decorrência do assassinato de seus maridos em 1968. Nerímio, auxiliar de fiscalização do Imposto de Circulação de Mercadorias (ICM) e Adair, segurança da fiscalização da Polícia Militar, foram assassinados em objeto de serviço no patrulhamento de sinalização do ICM. O processo administrativo traz o relatório dos assassinatos contendo detalhes do ocorrido na cidade de São Valentim, além de fotos e descrições minuciosas da cena do crime. Por meio desta documentação, percebemos que este duplo homicídio ocorreu após a solicitação da documentação necessária que permitiria o transporte de carga, ao motorista de caminhão, Adelino. Devido à ausência da documentação, o fiscal do ICM informou a apreensão do caminhão até o pagamento de multa. Nota-se pelo relatório do processo que Adelino fora tomado pela ira ao não aceitar a autuação, fato que desencadeou no assassinato de Nerímio e Adair com seu próprio revólver. Além disso, o processo também apresenta algumas questões interessantes sobre a função do policial militar referente ao risco de vida e ao desgaste psicológico. A revisão de pensão é concedida para ambas as viúvas.
Outro caso de uso de arma de fogo é referente à solicitação de pensão vitalícia encaminhada em 1980 por Catarina, dependente de Jair, vulgo Jacaré e radiotelegrafista policial, acusado de roubo de galinhas. Darci, dona de um bordel no município de Alegrete, acusa Jair de roubar por inúmeras vezes galinhas que ficavam nos fundos do seu estabelecimento. Ao final da década de 1970, ao cair da noite, juntamente com outro sujeito, Josué, músico que por vezes trabalhava no bordel, foram encontrados por Ermes, marido de Darci, dentro de seu pátio levando algumas galinhas. Ermes usa sua arma para atirar em direção ao galinheiro e atinge Josué no braço direito, que sobrevive ao ocorrido. Jacaré foi absolvido com a justificativa de que sua conduta privada era incompatível com a função policial, além de considerarem seus “bons antecedentes”. Entretanto, o policial é demitido de sua função, o que dá direito a uma pensão proporcional ao seu tempo de serviço, durante 180 dias seguintes à demissão, à sua esposa.
Os dois casos pontuam um período em que o imaginário a respeito das armas de fogo estava pautado na naturalidade em defender-se individualmente, principalmente no ambiente privado, como por exemplo, em caso de invasão de propriedade. Tais processos administrativos contribuem para pesquisas referentes ao período histórico anterior ao Estatuto do Desarmamento e suas implicações na sociedade, mas também para reflexões atuais acerca das divergentes opiniões sobre a livre utilização de armas que a revogação do Estatuto acarretaria.
Esperamos que a apresentação dos processos administrativos que compõem o acervo do APERS sirva de inspiração para futuras pesquisas. Entre em contato para solicitar seu atendimento através do e-mail: saladepesquisa@smarh.rs.gov.br
Referências:
FUNDO: SECRETARIA DA JUSTIÇA – Processos nº2073 e 4042.
ALESSI, Gil. Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragens. El País, 31 out. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html. Acesso em: 28 de fevereiro de 2018.
LIMA, Eliane Carmanim. A campanha do referendo do desarmamento. 2009. 204 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFRGS. Porto Alegre, 2009.
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Acervo disponível para pesquisa: Secretaria da Justiça
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